Eleições do Pernil
As eleições no Pernil nunca foram um jogo limpo. Bem, quer dizer; depende do seu ponto de vista. Para nós, que não somos de lá, é esperada uma disputa justa, com as pessoas discutindo, de fato, planos de governo e tudo mais. Bem, no Pernil, a banda toca de outra forma: eles querem mesmo é bagunça e pancadaria; querem ver os candidatos falando mal um do outro, lavando roupa suja, desenterrando sacanagens, enfim, querem ver o pau comer.
Eles gostam tanto disso, que fizeram questão de as eleições serem todas separadas: presidente em um ano, governador no outro, prefeito no outro e deputados e senadores no outro. Pois é, é uma bagunça.
Mas, não só isso, como este é o melhor realiti chou que eles podem ter, eles fizeram questão de aprovar uma lei que permitia um fundo eleitoral de aproximadamente 6 bilhões de falsos. Isso, seis bilhões de falsos, que é, basicamente, tudo o que eles gastam em saúde e umas dez vezes o que gastam em educação no ano. Mas, quer saber? Valia a pena. Nada como ver os políticos brigando na televisão!
Puxa, e se tinha uma coisa que eles gostavam de ver era polarização! A polarização no Pernil sempre foi tão grande, que algumas plataformas digitais tentaram, por meio de seus algoritmos, diminui-la, mostrando para uma pessoa de direita, por exemplo, posts fofinhos de gatinhos de esquerda. Seus nomes eram Iogurt e Baixavista. Já ouviu falar deles? É claro que não. Foram massacrados e extintos por outras plataformas muito mais sofisticadas, cujo único objetivo de seus algoritmos era aumentar ainda mais a polarização, como Facebutt¹ e Foogle².
Outra coisa muito enraizada na política do Pernil, também, era que os políticos iriam roubar dinheiro público. Quer dizer, não era bem roubar; os pernileiros sabiam desde pequenos que, uma vez que um político chegasse à sua plataforma de poder, fosse qual fosse seu cargo, ele tinha direitos adquiridos de desviar dinheiro das contas públicas para satisfazer seus desejos mais sórdidos. Então, o povo adorava quando ficava sabendo, por exemplo, de filhos de políticos comprando mansões, ou de financiamentos de governos ditatoriais de outros países… Enfim, quanto mais mirabolante fosse o negócio, mais o povo gostava. Era de impressionar a engenhosidade dos políticos para isso! O sonho de todo pernileiro era ser criativo assim.
Mas eis que o Pernil decidiu passar uma renovação; sim. Políticos cansados de passarem suas vidas brigando entre si e com um certo peso na consciência do tanto de regalias que tinham perceberam que estava na hora de mudar; eles tinham de fazer algo diferente, tinham de discutir os rumos do país nas eleições, e não com quem o vizinho de fulano traíra a ciclana; tinham de usar o dinheiro público para tarefas e necessidades públicas; tinham que, enfim, liderar o país.
No começo, pareceu tudo muito radical, mas, aos poucos, a ideia foi penetrando nos políticos. As eleições foram transformadas em eleições gerais, apenas uma vez a cada cinco anos; nada mais de reeleição; nada mais de fundo eleitoral, cada político que pagasse a sua campanha; e as contas do governo teriam, a partir de agora, transparência, ou seja, você finalmente saberia em que seu dinheiro estava sendo gasto.
O povo ficou indignado; a disputa eleitoral daquele ano não teve nenhuma, absolutamente nenhuma acusação! Nenhum xingamento! Nenhum sapato voando, nenhuma facada, nenhuma tentativa de assassinado! Os políticos foram perfeitamente educados, deixaram o outro falar, ouviram e debateram as propostas de melhoria para o país…
Pelas ruas, discussões acaloradas de que algo estava muito, muito errado. Como podiam? A melhor coisa era a disputa eleitoral anual! O povo basicamente parava por 3 meses ao longo do ano, quando começava o programa eleitoral, em julho, apenas para discutir política (quer dizer, apenas para fofocar e falar mal dos candidatos), enquanto o governo, bem, o governo ficava parado basicamente o ano todo, porque em novembro já começavam a preparar o pleito de outubro do ano seguinte e, convenhamos, qual é a esfera governamental, ou da câmara, que pode trabalhar adequadamente, quando uma parte do governo está prestes a disputar eleições? Lógico que ninguém poderia trabalhar de verdade nestas circunstâncias!
Mas, com a última reforma, a procrastinação tinha acabado, o programa eleitoral durava apenas 45 dias, e, acredite se quiser, os políticos estavam realmente trabalhando ao menos 9 meses por ano! Isso era inacreditável!
Todos sentiam falta das brigas na TV Câmara, das baboseiras, das CPIs infundadas, dos estratagemas de derrubadas, tentativas de golpe, enfim…
Desiludidos naquele ano, os pernileiros foram às urnas e votaram basicamente no uni-duni-tê. Eram todos iguais! Que diferença faria? Qualquer um que escolhessem parecia, para a decepção de todos, realmente querer trabalhar e transformar o Pernil em um país de primeiro mundo. Que decepção.
Bom, dois candidatos foram ao segundo turno, o de extrema direita e o de extrema esquerda, e quando eles acharam que, finalmente, o pau ia comer e a cobra ia fumar…
Eles se uniram! É, é isso mesmo! Transformaram-se em um partido de extremo centro, e o Pernil ficou com não um, não três, mas dois presidentes e dois vice-presidentes! E você pode ficar se perguntando: como eles tomavam suas decisões? Ora, isso é fácil. Alternadamente. Uma vez, um decidia; próxima vez, o outro decidia, indiferentemente do conteúdo da decisão, do motivo ou fosse o que fosse. E você poderia pensar que o congresso iria agir de forma que as pautas de direita caíssem com o de direita, e as de esquerda, com os de esquerda, mas não! Eles criaram um programa que tornava a distribuição de decisões totalmente aleatória, de forma que nunca saberiam para quem iria!
O Pernil cresceu como nunca; virou referência no mundo. Um gigante exportador de produtos agropecuários, um paraíso de investidores. Ruas esburacadas foram reasfaltadas com um asfalto que nunca iria se desfazer; pontes que caíram foram reconstruídas em três dias, e não três décadas; malhas ferroviárias cortaram o país de ponta a ponta, árvores foram replantadas, florestas foram protegidas, queimadas foram impedidas, e obras de metrô – sem desvio de dinheiro! – foram concluídas em tempo recorde, com até um metrô de altíssima velocidade ligando as principais capitais do país – da Amastônia ao Mato Grande do Sul.
Você acharia que os pernileiros estavam felizes com isso, certo? É claro que não! Estavam malucos da vida! Quem disse que eles queriam um país de primeiro mundo? Eles queriam matar um leão por dia; brigar por ruas esburacadas, lutar para caber em transporte público cada vez mais caro, ter a certeza de que nunca na vida conseguiriam voar de avião, de tão cara que era a passagem – porque, afinal de contas, não é para empregado nenhum ir para a Disnão³, somente os multimilionários, certo?
E, assim, no ano de novo pleito eleitoral, começou uma revolução. Um homem chamado Capoleão (sim, sua função até então era, literalmente, castrar leões, e, bem, como não tinha leões no Pernil, ele estava desempregado havia décadas, vivendo de dinheiro do sindicato) promoveu um golpe de estado, instaurou a monarquia no país, mandou cortar as cabeças dos políticos corretos e definiu que, a partir de então, era para tudo voltar a como era dez anos atrás. Nada mais dessas ideias progressistas; eles queriam é ver os políticos brigando e algoritmos digitais destruindo a sociedade.
Mas, como ele sabia que uma monarquia seria monótona demais, Capoleão foi um visionário: instaurou uma monarquia parlamentarista e, mais do que isso, câmeras em todo o seu castelo, ligadas vinte e quatro horas por dia. Assim, o povo não teria somente um realiti chou, mas dois: um das brigas entre os políticos no parlamento e outro da vida da família real.
Não tinha como dar errado; funcionava assim na Ingraterra havia décadas, e os ingratos amavam. Era só dar um toquezinho pernileiro.
E todos viveram (in)felizes para sempre no Pernil. Viva a polarização!
¹ O Facebutt tem uma história de criação bastante engraçada: durante a faculdade, o seu criador quis fazer uma rede digital em que as pessoas deveriam ligar os rostos às bundas dos outros alunos da faculdade. Às vezes, eles acertavam, às vezes, erravam, e o negócio se tornou tão divertido, que logo eles cresceram e se tornaram uma potência mundial. Até hoje você ainda pode fazer isso na rede, ligando pessoas aleatórias a seus traseiros.
² Instrumento de busca que tem absolutamente todas as respostas absolutas. Elas são diferentes dependendo da região do mundo e da verdade absoluta cultuada lá.
³ Parque temático dos Emirados Unidos da Arrogância, em que os fiéis cultuam um deus hamster e seus companheiros animais e são recompensados com filmes que promovem lavagem cerebral e produtos superfaturados feitos com mão de obra escrava e que causa danos à sua saúde. Sonho de consumo de qualquer um, certo?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais