O Alongamento dos Dias
Excelente ideia, a dele. Deveria agora trabalhar para fazer o ano passar mais rápido, assim as férias chegariam mais cedo. Por que
Começou com um comentário relativamente retórico, daqueles que todos nós fazemos sempre: “Gostaria que o dia fosse mais longo”. Até aí, todos nós dizemos isso, quando estamos fazendo algo de que gostamos, ou quando o prazo para entregar alguma coisa do trabalho já está batendo. O problema é: uma coisa é nós falarmos isso. Outra é o presidente dos EUA¹ falar.
No começo, pareceu impossível; porém, quando ele estava lá no seu salão oval, olhando para o plano terrestre (sim, este presidente era areiaplanista e, durante o seu governo, havia abolido totalmente o uso de globos e trocado por planisférios terrestres), observou o mapa apontando os EUA e todos os outros territórios do mundo para os quais, em sua benevolência, ele havia concedido como regiões parcialmente autônomas (parcialmente, porque, se não seguissem o que ele falava, sofreriam sanções).
E, bem, diante de tanto poder (ele pôde mudar a forma do mundo!), ele chamou os seus maiores cientistas para resolver um problema para ele:
– Eu quero que o dia seja mais longo – anunciou ele.
– Mas, senhor presidente, isso já está em discussão no congresso, sobre o horário de verão…
– Não, não, isso é baboseira. Quero que o dia seja realmente mais longo. O que vocês podem fazer a respeito disso?
Os cientistas olharam para o plano da Areia.
– Bem… Já que… A Areia é plana… – começou um deles, que o presidente gostava de chamar de Tico. – Podemos… Fazer o sol girar mais devagar em torno dela?
– Esta é uma boa opção – completou o Teco.
– Não sejam idiotas – disse o presidente. – Eu sei que a Areia não é plana. Mas, não contem para ninguém – completou, diante da surpresa deles. – Fala sério, quem é o idiota que ia acreditar nisso? Areia plana? Enfim. Eu sei que ela gira em torno do Sol. Mas, agora que disseram, a sugestão de vocês é boa. Podemos fazer a Areia girar mais devagar?
Os dois se entreolharam.
– Precisamos fazer os cálculos.
– Ok. Ao trabalho. Ah, e, senhores – ele complementou, quando estavam saindo do salão –, se alguém ficar sabendo sobre o que falamos aqui… Inclusive a minha concepção da forma do nosso planeta… Vou pedir para o FBI² tomar conta de vocês.
Os dois engoliram em seco e desapareceram. Algumas semanas depois, retornaram com vários e vários projetos ultrassecretos debaixo do braço.
– Nosso plano é este aqui – disse o Tico. – Vamos instalar foguetes ultrapotentes nos polos. Primeiro, porque parte destes territórios aqui é nossa…
– Não, não – corrigiu o presidente, enquanto tomava um milquisheique. – Tudo é nosso. O mundo é nosso. Mas este não são territórios de GPABE³.
– Certo, certo, desculpe – prosseguiu o cientista. – Segundo, porque a velocidade de rotação da Areia é menor aqui, já que a circunferência é menor. Vamos precisar desacelerar menos aqui, do que no centro e…
– Não quero saber dessas coisas técnicas.
– Ok. Bem, colocamos propulsores aqui e ligamos no reverso. Eles vão desacelerar a Areia e, com isso, os dias serão mais longos.
– Excelente. Em quanto tempo conseguem fazer isso?
– Uns 4 anos – respondeu o Teco. O plano deles era demorar tanto com o projeto, que o presidente teria passado por uma nova eleição e, com sorte, perdido, e aí este projeto sem futuro seria abandonado.
– Vocês têm seis meses. Obrigado, senhores – anunciou ele e os despachou pela porta. – Ah, não se esqueçam de pagar o lanche para o general, antes de saírem, isso aí não é grátis – completou, apontando para os salgadinhos que eles tinham em mãos.
Bem, com muita insistência e muitos fundos governamentais desviados da saúde, educação e do saneamento básico, em seis meses eles realmente conseguiram construir os foguetes e lá estavam, no polo norte, no meio do inverno congelante.
– Muito bem, estamos aproveitando o petróleo que temos nos lençóis freáticos aqui do Aplaska para alimentar os foguetes – disse o Tico. – Pode ser que roubemos um pouco das reservas da Tróssia⁴…
– Deixe os Trossos comigo. Não se preocupe. Eles devem ficar felizes por deixarmos eles serem do tamanho que são. Se reclamarem, pego de volta a metade leste.
– Bem, a mesma coisa vai acontecer na Skol⁵. Assim que eu apertar este botão, você vai sentir um solavanco, e a Areia vai desacelerar.
– Deixa eu apertar, deixa eu apertar!
Tico entregou o controle para o presidente Trompa, e ele, com sua luva grossa e gigantesca, apertou desajeitadamente o botão.
– Não, era para apertar o…
Mas a Areia deu um tranco e, de repente, eles se sentiram impelidos para trás a uma velocidade alucinante, tão alucinante, que eles caíram no chão e foram deslizando pelo gelo como pinguins, até pararem em uma superfície fofinha, que descobriram ser um urso polar. Este também estava tão tonto com o gira-gira, que se enfiou em sua toca, deixando os três e os seguranças do presidente do lado de fora.
Depois de alguns minutos, a Areia pareceu desacelerar, e eles se sentiram seguros para, finalmente, levantarem-se.
– E aí? Por que eu tenho a impressão de que algo deu errado?
O cientista tentava coçar a cabeça debaixo da touca gigante que usava, enquanto olhava para a tela do seu celular.
– A Areia na verdade, acelerou, senhor.
– Como assim? Não era só ativar os foguetes?
– No reverso, senhor. O senhor apertou o botão de aceleração para frente.
– Mas, por que raios vocês criaram um foguete que poderia ir nas duas direções, se eu pedi especificamente para desacelerar a Areia? – perguntou ele, irritadíssimo.
– Ahm… – falou o Teco. – Questão de segurança?
– Pelo amor de mim! E agora?
– Bem, a Areia está girando mais rápido… Agora, o dia vai durar umas 18 horas.
O presidente Trompa fez, claro, a maior trompa, enquanto mordia seu chapéu.
– Liguem essa coisa no reverso!
– Não dá, acabamos com todos os estoques de petróleo do mundo – disse ele, olhando para outra tela do celular.
– Resolvam isso – ele falou, pegando o cientista pelo pescoço. – Ou eu vou dar vocês de comer para o urso!
Ao ouvir isso, o bichano já pôs a cabeça para fora da toca.
Algumas semanas depois, os cientistas encontraram o presidente, que parecia exausto com os dias mais curtos.
– Continuo trabalhando o mesmo número de horas por dia, mas, agora, preciso dormir menos, porque alguns incompetentes fizeram a Areia girar mais rápido! – esbravejou, quando eles entraram. – Mas, ao menos, tem um lado bom na besteira que vocês fizeram.
– O quê? – indagou o cientista, surpreso.
– Eu falei para a mídia que essa é mais uma prova das teorias de conspiração que mostram que o nosso planeta na verdade é plano, e que telas em torno de todo ele controlam o dia e a noite, como naquele filme lá, do cara que mora na bolha, aquele engraçado das caretas, sabe? Enfim, e que deu pau no relógio e eles aceleraram o tempo.
– As pessoas engoliram isso?
– Nunca tive tantos seguidores no bellower⁶. – respondeu ele. – Quanto mais absurdo, mais o povo acredita. Mas, agora, falando sério; qual é a proposta de vocês?
Eles abriram mais e mais daqueles rolos gigantes de papéis.
– Vamos desviar este asteroide para impactar a Areia neste sentido – disse um deles. – Acertando a velocidade, conseguimos fazer o planeta desacelerar exatamente o tanto que precisamos.
– Muito bem. Façam isso.
– Mas, o senhor não quer saber as consequências?
– Tsunamis? Terremotos? Vulcões? Um inverno nuclear? Não tem problema. Vou mudar a sede do governo para o centro do país e construir um bunker, ficarei a salvo de tudo isso. O importante é o dia ser mais longo. Vou aproveitar e pedir ao marketing para fazer um serviço de contrainteligência, antes que o pessoal tenha ideia de olhar para cima. Sabe, aquele filme anda arruinando todos os meus planos de lavagem cerebral⁷.
Os cientistas o encararam, sem saber como responder.
– Não preciso falar do FBI de novo, preciso?
– Não, não… – eles retrucaram e sumiram.
Poucas semanas depois, no mais absoluto sigilo, foi lançado um foguete, enquanto o planeta aproveitava sua velocidade de rotação maior com diferenças na temperatura, correntes marítimas e ventos, que estavam deixando os meteorologistas malucos. Mas, vamos falar a verdade: nada mais satisfatório do que dizer, de boca cheia, que a previsão do tempo errou, né? (Na verdade, quem estava aproveitando de verdade eram os hotéis; o ano de repente ganhara 25% mais dias, que eram 25% mais curtos, o que foi ótimo com relação aos turnos de trabalho (não precisam de dois turnos de doze horas, bastava um turno completo e um meio turno), e eles puderam manter as estadias pelo mesmo valor, ou seja: lucro, lucro, lucro!)
O foguete identificou o asteroide que queriam, acoplou-se a ele e começou seu processo de aceleração e mudança de rota. As televisões logo começaram a noticiar o aparecimento do asteroide; a contrainteligência fazia vídeos e fotos modificadas, apagando digitalmente o objeto dos céus. Quando, finalmente, ele se tornou visível a olho nu, novamente começaram com o discurso dos telões e dos erros da teoria de conspiração. Por fim, o meteoro adentrou a atmosfera, queimando loucamente, em direção ao Oceano Bravio⁸, onde teria o seu impacto, mais perto da Estranhália⁹. Afinal, se caísse lá, tudo bem; que as ondas cobrissem a Estranhália, ela não significava nada para os EUA, os cangurus eram uma praga, assim como os emedicanos do sul, e, se as ondas subissem e atingissem a Azia, ainda por cima poderiam derrubar a Atchina, um grande oponente comercial dos EUA. O grande problema era a produção de celulares e roupas baratas com mão de obra escrava (digo, análoga à escravidão, pois os EUA não toleram a escravidão, mas nada contra algo análogo a ela) na Pailândia¹⁰, mas eles poderiam mudar isso para a Afraca, depois, ela realmente estava precisando de uma mãozinha.
Bom, o resultado, vocês já podem imaginar: dois cientistas que não conseguiam sequer acertar o sentido de rotação da Areia iriam conseguir fazê-la diminuir de velocidade com um asteroide de forma segura e controlada? É claro que não. De fato, o asteroide acertou o planeta e o fez voltar à velocidade quase normal – agora, um dia teria 25 horas, que era basicamente como se estivessem em um horário de verão expandido. No entanto, todo o continente da Estranhália foi por água abaixo, literalmente, assim como boa parte do sul da Azia. Os desertos da Afraca viraram charcos, e as florestas da Emédica do Sul só não viraram uma plantação de algas, porque a cadeira montanhosa dos Desandes segurou tudo como uma barricada. Vulcões explodiram, terremotos eclodiram, fumaça foi aos céus e, bem, foi basicamente um apocalipse.
Mas, tudo bem, porque o presidente Mickey Trompa estava lá em seu bunker, de onde saiu quando tudo estava concluído.
– Bom, uma hora a mais. Já ajuda. Achou que vou usá-la para instituir a siesta no meio da tarde. Muito obrigado, senhores! – ele falou e voltou ao seu escritório para pôr em execução a sua nova siesta.
Excelente ideia, a dele. Deveria agora trabalhar para fazer o ano passar mais rápido, assim as férias chegariam mais cedo. Por que não?
¹ Emirados Unidos da Arrogância, um país da Emédica do Norte que, como diz o próprio nome, acredita que pode mandar no resto do mundo. Infelizmente, parece que ele pode.
² Embora a sigla original do FBI se referisse a um escritório de inteligência, na gestação do Trompa, o então presidente dos EUA, havia sido mudada, e com razão, para Força Bruta Indomável. Acho que pelo próprio nome você já consegue entender o que eles faziam com as pessoas que investigavam e como conseguiam suas informações, certo?
³ Governo Parcialmente Autônomo por Benevolência Emedicana, que é a sigla que ele criou para designar basicamente todo o território que não era primariamente dos EUA.
⁴ Maior país da Azia e, na realidade, maior país de todo o Areia (embora o presidente Trompa tenha pedido para modificar os mapas e os livros dizendo que, na verdade, os EUA incluíam toda a Emédica e, portanto, eram o maior país do mundo), muito conhecido por seu inverno inclemente, por suas bebidas alcoólicas e por uma adoração inexplicável por bonecas que cabem dentro de bonecas que cabem dentro de bonecas que cabem dentro de… Bom, você entendeu.
⁵ Continente do polo sul, cujo nome derivou de uma palavra nórdica que significa “Brinde”. Alguns dizem que a origem deste nome é porque os primeiros descobridores da Skol foram, na realidade, acredite se quiser, pernileiros. E, uma vez descoberta, eles tiveram de decidir o seu nome – o que fizeram, claro, a uma mesa de bar lá no Mar de Fevereiro. Um pediu a cerveja de uma marca (Ártica), outro, de outra (Skol) e um terceiro ainda pediu uma terceira (Trahma). Tiraram dois ou um para ver quem ganhava e, assim, acabamos com o nome de Skol para o continente. A verdade, porém, é que os Vikings descobriram este continente e propuseram um brinde (Skol), porque, finalmente, tinham achado um lugar ainda mais gelado do que a casa original deles, e isso era certamente motivo de comemoração (afinal, na filosofia deles, naquela época, nada pode deixar você mais feliz do que descobrir que você está numa situação ruim, mas tem gente pior, então, no cômputo geral, você até que não está tão mal assim).
⁶ Rede social muito famosa no planeta Areia, cujo símbolo, como o próprio nome sugere, é um gado mugindo. O objetivo dele? Compartilhar comentários sobre as mais diversas coisas de forma apenas parcialmente parcial.
⁷ Ele está se referindo ao filme muito famoso, “Não olhe para baixo”, em que o governo tenta esconder da população o fato de que a população de homens-toupeira domina a Areia de seu interior oco desde tempos imemoriais, com campanhas falando que os revolucionários querem tolher da população o direito de ignorar o que ocorre sob seus pés.
⁸ Maior oceano do planeta Areia, tem este nome por suas águas serem tudo, menos pacíficas. Reza a lenda que Krakens habitam estas águas e comem embarcações de café da manhã.
⁹ Um país que é uma ilha gigante no sul do planeta Areia, entre os oceanos Bravio e Indico (que tem este nome, por sinal, por ser ótimo para ninguém se perder: ele sempre indica o caminho certo, daí, Indico. Serviu de rota comercial por séculos por sua política de boa vizinhança), que tem esse nome porque tudo lá é estranho; há animais peçonhentos, sendo o mais marcante deles uma mistura de pato e castor, mamífero, mas ovíparo, que ainda por cima é venenoso e, reza a lenda, tem poderes psíquicos.
¹⁰ País famoso por suas praias paradisíacas e produtos de qualidade e origem duvidosas. Tem este nome porque, bem, é a terra dos pais, e, sinceramente, acho melhor não me aprofundar mais nos motivos para isso, que não são lá muito honrosos.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais