Branca de Neve Digital
Em um país muito distante, nasceu uma menina, que era tão branca, mas tão branca, que a mãe decidiu chamá-la de Branca de Neve. A sua sogra até falou que o nome não pegaria bem, que seria algo como uma maldição, mas a mãe não quis nem saber e, despachando-a com um aceno, mandou que o marido assim a registrasse.
Pois bem, a mãe de Branca de Neve infelizmente não estava muito bem, pois sofreu um blues puerperal, que depois evoluiu para uma depressão grave e, desanimada, desmotivada e com um marido que não a apoiava, um dia ela simplesmente sumiu de casa, deixando o pai com a pobre Branca de Neve.
Sim, eu sei que é um começo estranho de história, mas este é o mundo real. O pai, por sua vez, logo percebeu que não daria conta e acabou por se casar novamente. Como ele era muito rico, não foi difícil encontrar pretendentes, e ele se casou com a mulher mais bonita que encontrou, uns quinze anos mais nova do que ele.
A madrasta, por sua vez, tudo o que tinha de bonita, tinha de má (por isso que se chamava madrasta, e não boadrasta), e nunca quis engravidar, para não estragar a beleza de seu corpo, tão duramente cultivada com academia, dieta e tudo o que a medicina moderna dos endinheirados poderia oferecer.
Vamos para a parte interessante da história, agora: quando Branca de Neve já era adolescente, havia se tornado uma garota lindíssima, tão linda quanto a sua mãe. E a sua madrasta, por sua vez, embora continuasse linda também, observava-a com olhos de inveja. Seu pai a achava a coisa mais linda do mundo (daí a inveja da madrasta!) e havia criado uma conta de Instagram logo que ela nascera. Com isso, Branca de Neve acumulara mais seguidores do que a própria madrasta!
– A Kim Kardashian, tudo bem! Mas ninguém além dela terá mais seguidores do que eu!
Com tantos seguidores, as duas viviam vidas de princesas (imagina quantos recebidinhos!). Na verdade, sua madrasta nem precisaria se preocupar com isso e, talvez, se unissem forças, ainda conseguissem mais e mais coisas. Só que ela tinha muita, muita inveja e decidiu pedir conselhos em uma reunião pelo Google Meet para o seu amigo de longa data, consultor de imagem, Don E. S. Pello.
– O que acha que devemos fazer? Ela não pode me ultrapassar!
– Um comentário bem colocado, e vamos acabar de vez com a carreira dessa menina nas redes sociais – disse ele, com seu rosto tridimensional em uma tela bidimensional de computador de última geração.
E foi assim que fizeram. Inseriram, de forma despretenciosa, alguns comentários sobre o nome de de Branca de Neve, cumprindo a previsão da sua avó.
“Como vocês podem seguir uma pessoa que é racista até no nome?”, era o que diziam os comentários.
É claro que Branca não era racista, mas a escolha de seu nome havia sido certamente infeliz, especialmente um país no qual metade da população era negra. Com isso, os seguidores se enfureceram e se dividiram: havia uma parte que apoiava Branca e uma parte crescente que a acusava de atos racistas mesmo quando eles sequer haviam ocorrido. Vídeos (depois provados pela sua equipe de advogados como deep fake) mostravam Branca de Neve em ações nem um pouco edificantes e gravações falsas de sua voz a mostravam dizendo algo sobre supremacia branca.
Branca de Neve, quando esta bola de neve cresceu e a deixou estupefata, ainda se arriscou a responder:
“Quem escolheu meu nome foi minha mãe. Se eu fosse preta, provavelmente teria me chamada de ‘Preta de Carvão’”.
Isso não saiu bem como ela esperava. A resposta do público foi imediata:
“Então, você está comparando os negros a carvão?”.
“Não foi isso que quis dizer”, ela ainda tentou, mas foi derrubada por uma avalanche de comentários. Pessoas já se organizavam para fazer protestos e queriam depredar a sua casa em um dos bairros mais chiques da cidade mais rica daquele país.
Claramente, Branca de Neve precisava de um assessor de imprensa. Sua madrasta, não sem esconder um sorriso, veio ao seu socorro, fingindo que havia acabado de ficar sabendo.
– Eu tenho um excelente para você.
Era o tal do Dom Pello. Ele rapidamente avaliou a situação e disse:
– Você precisa sair de cena.
Foi o que fizeram; Branca de Neve desativou o seu Instagram, deixando todos os seus acessos para trás, e fugiu na calada da noite para uma cidade no interior, onde ficou sob os cuidados de sete anõesvogados (sim, eles eram anões e advogados. Não, eles não eram especialistas em pequenas causas). Não só isso: era uma equipe especializada em mineração de bitcoins, que não tinha nada a ver com a história, mas que ao menos seria um local tranquilo para Branca esperar a poeira baixar.
– Já pensou em trocar de nome? – um deles até sugeriu, quando ficou sabendo da história.
– Nunca! Minha mãe escolheu este nome com todo o seu amor!
– Mas, talvez ela não estivesse batendo bem da cabeça, quer dizer, Branca de Neve…
Mas não havia quem a demovesse de manter a última homenagem de sua mãe.
Branca de Neve, sem mais a sua vida de popstar da internet, não sabia o que fazer. Queria postar cada instante do seu dia a dia, perguntar a opinião dos seus seguidores; queria ver os coraçõezinhos surgindo e sentia falta da dopamina que cada interação dava em seu cérebro, até mesmo dos barracos e xingamentos.
Com isso, ficou muito, muito triste, sentindo-se mal como se fosse uma pessoa viciada em abstinência.
Vendo sua tristeza, um dos anõesvogados decidiu ajudá-la e lhe deu um novo celular.
– Tem uma nova rede social aqui que chama BeReal. Talvez te ajude.
Instigada a postar novas fotos em momentos inusitados, Branca sentiu que podia respirar novamente. Rapidamente ganhou muitos e muitos seguidores, que estavam doidos para ver uma moça linda como uma princesa em sua vida rupestre e despretenciosa. Sua madrasta, é claro, não demorou a ser informada pelo Dom E. S. Pello.
– Ela está com cada vez mais seguidores! – exclamou ele.
– Precisamos dar um jeito nisso.
O mesmo comentário cirurgicamente colocado acabou de vez com a carreira crescente de Branca de Neve, como uma planta cortada pela raiz.
A Madrasta continuou, assim, reinando absoluta nas redes sociais, atrás apenas das Kardashians. Branca, por sua vez, ficou cada vez mais e mais deprimida, isolada na casinha dos mineradores de bitcoins.
Assim foi, com ela já tão deprimida quanto sua mãe, deitada em uma cama em um quarto escuro, que a deixava ainda mais branca do que já era, quando um cliente dos anõesvogados apareceu. Ele era um investidor milionário de outro país, que havia feito fortunas no mercado de bitcoins (na verdade, ele vendeu uma pizza por 1.000 bitcoins na época em que eles não valiam nada) e ficou curioso com a moça deitada e isolada lá. Os advogados contaram a sua história, e, sem se conformar, ele se aproximou e acendeu a luz.
– Dona Neve! – exclamou ele. – Vamos parar com essa palhaçada!
– Como é? – perguntou ela, sem acreditar. Ele poderia ser tudo, menos um príncipe encantado de histórias de contos de fadas que vinha salvá-la de sua tristeza abissal.
– Quem é que manda na sua vida? Você mesma ou as redes sociais?
– As redes sociais! – ela respondeu, desmoronando na cama novamente.
– É claro que não! As redes sociais foram criadas por seres humanos para prendê-la, para escravizá-la! Veja o que fizeram com você! Você merece muito mais do que isso!
– Mas, com vou viver sem postar cada momento da minha vida online? Sem saber o que milhões e milhões de desconhecidos acham de mim?
Ele se sentou na cama e a encarou.
– Você vai finalmente viver. Venha, eu vou lhe mostrar o que é a vida de verdade!
Ela saiu da casa dos anões e, de fato, viu o mundo; pela primeira vez na vida, viu uma árvore de verdade, viu uma vaca dando leite (eles não vêm de caixas que nascem no chão do supermercado!), uma ovelha sendo tosquiada; ouviu os pássaros cantando (uau, não são sons criados por computador! Como eles conseguem fazer isso com a própria voz?), viu os peixes nadando (e eles respiram de verdade dentro da água? Como conseguem?), apreciou os pássaros voando (sem jatinhos acoplados? Quem diria!); conversou com pessoas de verdade, com a dura necessidade de as encarar nos olhos, sem a distância fria de uma tela, apertou suas mãos, viu seus sorrisos.
E gostou!
Aquele era o mundo real, então?
Era simplesmente… Incrível!
Esta é uma história real, não um conto de fadas. Assim, Branca de Neve não se casou com o milionário encantado, mas lhe agradeceu muito por abrir seus olhos e tirá-la da caverna de Platão digital. Mudou de nome, finalmente admitindo que aquilo não estava pegando bem, foi estudar e se formou advogada. Agora, vive a vida de real, bem longe das redes sociais e lutando pelas causas raciais, mesmo sendo ainda branca como a neve. E a sua madrasta? Está perdendo cada vez mais seguidores, conforme envelhece. É, o mundo digital é cruel. Ela tentou seguir os conselhos de um tal de Felon Tusk, mas parece que os procedimentos de harmonização facial estão mais atrapalhando do que ajudando…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais