O Cobrador de Sonhos
Não muito tempo atrás, um artista ficou revoltadíssimo; ele havia tido um sonho com uma melodia linda, maravilhosa. Não, ele não se irritou com este sonho. O fato é que ele guardou a melodia em sua mente, bem lá no fundo, planejando, depois de terminar a sua turnê, começar a trabalhar em uma música que coubesse bem com ela.
No entanto… Qual não foi a sua surpresa, quando, ao voltar para o seu país, descobriu que alguém já tinha pegado a sua melodia e transformado em uma música, que agora estava fazendo o maior sucesso, até mesmo na mídia internacional?
Aquilo beirava o absurdo; considerando que ele não tinha contado para ninguém a respeito da melodia e que não havia escrito suas partituras ou sequer cantarolado, só restava uma possibilidade: o artista ladrão havia surrupiado a melodia dos seus sonhos. Ou tinha sonhado o mesmo que ele, o que era igualmente absurdo.
Sendo a última impossibilidade a mais improvável, ele decidiu que tinha de fazer algo a respeito: tinha de achar uma forma de impedir que os outros roubassem seus sonhos.
Assim, ele foi visitar o mais famoso cientista de seu país, um homem capaz de inventar qualquer coisa.
– Eu quero que você crie para mim um aparelho capaz de registrar os meus sonhos e comparar com os sonhos dos outros, para ver se alguém está copiando os meus sonhos. E, se estiver, eu vou cobrar multa por direitos autorais.
– O projeto é complicado. Lógico, não a parte de captar os sonhos, isso é fácil; o problema é comparar um com o outro e, depois, enviar a cobrança – respondeu o cientista.
– Eu pensei nisso. Acho que o programa pode comparar através de imagens-chave e, principalmente no meu caso, sons-chave.
– Como um banco de dados! – exclamou o cientista.
– Exatamente.
– Agora nos resta o problema do registro e da cobrança.
– Fácil, é só conectar diretamente com o escritório de direitos autorais. Vou solicitar registros diariamente. E, identificando de onde veio o sonho, é só enviar a conta. Vou contratar pessoas especificamente para isso.
O outro concordou, e o artista pensou se não era ele quem estava fazendo toda a parte difícil. Afinal, até aquele momento o cientista não havia falado nada com palavras complicadas.
– Muito bem, eu vou usar o meu amplificador de captação de ondas subteta, e usar as antenas de telefonia móvel como replicadores para fazer a captação a nível mundial. O único problema é que áreas com baixo sinal não vão pegar direito, mas eu posso aproveitar as ondas de GPS dos satélites e ter uma cobertura de 95% da Terra. Imagino que você não tenha interesse em saber o sonho dos seres que habitam as fossas Marianas, não é?
O artista assentiu, sem compreender lhufas; aí, sim, estava satisfeito. O homem estava falando difícil, o que significava que seu cérebro estava trabalhando.
– Agora, resta um pequeno detalhe…
– Qual?
– Isto não é ilegal?
– Ahmmmm… Se fosse para uma pessoa normal, sim. Mas eu sou um artista, e artistas são excêntricos e podem fazer este tipo de coisa.
O cientista concordou; era verdade. Se podiam fazer loucuras como usar ternos roxos de lantejoulas douradas, por que não ouvir o sonho dos outros?
Logo, a invenção estava pronta e instalada em um andar inteiro do quadriplex em que o artista morava. Decidiram começar aos poucos, primeiro registrando os sonhos todas as noites, depois requerendo os registros (que seriam agilizados por um contato que ele tinha subornado dentro do escritório de direitos autorais) e, por fim, comparando com os sonhos dos habitantes da sua cidade, antes de progredir para o estado, país, planeta e, se tudo desse certo, universo e além.
– Nada de alienígenas sonhando o mesmo que eu!
Como vocês podem imaginar, a reação da população foi de estranheza; como assim, estavam chegando multas por roubo de direitos autorais de sonhos? Quer dizer, e daí que determinada pessoa tinha sonhado com algodão doce feito de açúcar mascavo? Aliás, isso tinha sido duas semanas antes, e ele sequer se lembrava disso!
Mas, como estava escrito na carta que eles tinham tudo gravado, e que, caso desejasse recorrer, certamente perderia no tribunal, então era melhor pagar logo de uma vez, as pessoas acharam mais fácil aceitar a conta.
Logo isto se tornou rotina, e a população entrou em pânico – especialmente porque quem estava cobrando era um artista, e o que eles poderiam fazer, se ele era excêntrico? Excentricidade é um direito adquirido de pessoas da mídia, e nada se pode fazer a respeito!
A única solução era impedir que o amplificador subteta – na verdade, ninguém sabia que era ele, mas eles sabiam que era alguma coisa tecnológica que emitia ondas que possivelmente poderiam ou não causar câncer dali a três décadas – captasse os seus sonhos, e para tal, alguém disse que a melhor solução era usar uma caçarola de três camadas de aço fundido na cabeça. Provavelmente, a ideia veio do único produtor de caçarolas de três camadas de aço fundido do país, mas parecia ser tão boa, que ninguém retrucou, e ele se tornou um paneleiro milionário muito feliz.
De qualquer forma, milhões de pessoas andando pelo país com panelas na cabeça certamente chamou a atenção de alguém no governo, que começou a investigar, a pedido do seu líder, e descobriu o cientista que havia desenvolvido tudo. Ele foi chamado para se encontrar com o presidente, levando todos os seus papéis, e lá ele fez uma proposta irrecusável, que incluiria muitos e muitos ganhos.
– Aposentadoria 10 anos antes e um cargo público vitalício. E a Comenda do Comendador Comendado – foi a proposta.
Lógico que o cientista tentou cobrar mais pela sua invenção (tipo, o Prêmio Nobel e alguns bilhões de dólares?), mas foi recebido com um safanão na orelha.
– Vamos usar isso para impedir ataques terroristas no nosso amado país, e você fica aí, de picuinha por mesquinharias? Aposentadoria quinze anos antes. E três meses de férias por ano durante o tempo de serviço.
Ele suspirou; é, não conseguiria lá muito mais coisa.
Assim, pensando mais no bem de seu país do que do próprio bolso, ele entregou todos os dados necessários para fazer a sua invenção, sem ficar com nenhuma cópia, para que ninguém nunca pusesse as mãos e conseguisse fazer algo minimamente parecido.
Ele não contava, contudo, que chegaria à sua casa naquele dia e encontraria uma série de homens mal-encarados, com chapéus coco, colarinhos redondos e charutos eletrônicos.
Era o crime organizado (que gostava muito de estar estiloso, mas não queria morrer de câncer de pulmão), que também queria os projetos da máquina miraculosa. Bem, o cientista não tinha mais nada em mãos, já havia entregado tudo para o governo, mas, você sabe, quando o crime organizado pede uma coisa, se você gosta da sua vida, é bom dar um jeito de resolver (mesmo que eles peçam a sua morte, o que é um paradoxo). Assim, o cientista reproduziu de cabeça todos os projetos, montou a máquina para eles e, desta vez, ganhou o suficiente para sumir do mapa definitivamente (com a caçarola na cabeça, para garantir que não ouviriam seus sonhos), antes que alguém mais tivesse a brilhante ideia de vir pedir mais daquilo.
A máquina obtida pelo crime organizado foi levada para o extremo oriente do mundo, onde foi aperfeiçoada – e, em vez de ocupar todo um andar de um quadriplex, passou a ocupar a unha do dedo indicador. Em pouco tempo, estava disponível à venda, em lojas clandestinas ou pela internet, o seu próprio observador de sonhos.
Não preciso dizer que isso criou o caos. Primeiro, porque o escritório de direitos autorais não tinha como dar conta de tantos pedidos e teve de solicitar ao governo uma ação imediata – afinal, pelas definições de direitos autorais, sonhos não estavam incluídos!
Segundo, porque de repente pareceu uma ótima ideia começar a vasculhar os sonhos de pessoas famosas, e logo programas de realidade emocionantes como “Sonho dos Artistas” começaram a passar, e as pessoas assinaram os canais pagos para passar a noite inteira vendo pessoas famosas roncando e babando, enquanto, em uma tela secundária, apareciam as bizarrices que eles estavam sonhando. E, como as pessoas passavam a noite inteira vendo outros dormirem e sonharem, logo eles mesmos estavam dormindo no serviço – para compensar o sono perdido – e os patrões passaram a monitorar os seus sonhos lá também, o que aumentou em muito as demissões por justa causa (afinal, quem é que nunca sonhou em se livrar do seu chefe chato?).
Terceiro, porque rapidamente surgiram firmas de investigação de adultério onírico, e os casais mais desconfiados passaram a solicitar seus serviços. Em pouco tempo, os tribunais estavam cheios de casais que brigavam porque:
– Você teve um sonho dentro de um sonho em que você estava me traindo com a sua secretária!
Este era o mais básico. Mas houve casos em que:
– Você sonhou que eu estava sonhando que você estava tendo um caso com o bode do vizinho!
Os juízes estavam ficando tão confusos, que eles não sabiam se solicitavam ajuda de psicanalistas ou de médiuns. Aliás, poderiam os médiuns invocar Freud para dar uma luz?
Manifestações foram feitas por todos os países; o mundo entrou em colapso. Pessoas haviam decidido que a melhor coisa era tomar remédios para nunca mais dormir, de forma que nunca mais sonhariam, e em pouco tempo o mundo todo parecia uma horda de zumbis.
Uma hora, porém, as pessoas sem dormir entraram em colapso, e pelo mundo foram caindo em sono profundo, até que todo o mundo estava dormindo ao mesmo tempo. E isso era muita informação de uma só vez, especialmente para os observadores de sonhos que haviam sido criados para caberem nas unhas.
Como consequência, todos explodiram, destruindo-se para sempre. E, quando toda a população mundial acordou, cinco dias depois, estavam livres da praga que era poder conhecer os sonhos dos outros.
E quanto ao artista? Bem, teve de achar alguma outra excentricidade, como pintar o peito de azul e fingir que era uma galinha.
E o cientista? Está por aí, em alguma ilha paradisíaca, catando conchinhas, ainda com a caçarola na cabeça e outra para pôr as conchas. Todo cuidado é pouco.
Nota do autor, outubro de 2021: eu acho que eu criei esta crônica porque sonhei com algo que logo depois fizeram, ou algo do tipo. Mas, o que podemos tirar daqui é que certamente “Sonho dos Artistas” faria muito sucesso! Melhor eu já requerer a patente.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais