Burguesópolis
Nome: Nordon. David Nordon. Agente 00 à esquerda a serviço do Rei de Taboão da Serra, o magnânimo Henrique Nordon, o predecessor, o campeão, o agente 00 ainda mais à esquerda. Missão: identificar a loja Vivo de telefones celulares e trocar a linha de dois aparelhos. Tempo estimado: 30 minutos.
Sim, foi exatamente isso que os agentes 00 à esquerda e 00 ainda mais à esquerda (nesta crônica apenas chamados como eu e meu pai, respectivamente, para facilitar o andamento das coisas) foram fazer no Shopping Iguatemi às duas da tarde de um sábado chuvoso. O céu estava escuro desde o alvorecer, nuvens de chuva trazidas pelos poderosos ventos do sudeste prometiam uma tempestade nunca vista antes, precedida por uma aterrorizante calmaria, com um o ar parado, seco e quente.
Eu e meu pai, apesar das condições climáticas adversas e tempo comprometedor – após passar quatro longas horas de espera no auto-center, consertando a perua corsa Argentina da agente 00 um pouquinho mais à esquerda (esta seria minha mãe), as quais eu enfrentei bravamente lendo o livro O Primo Basílio, para a escola –, entramos no Shopping Iguatemi para completar a nossa missão.
Estacionamos no piso 6 – Uva. Curioso, muito curioso. Todos os andares tinham o nome de uma fruta, para facilitar a memorização, como se um simples dígito não fosse suficiente, mas não havia nada para lembrar a localização do carro, que poderia estar em qualquer lugar no meio daquela vinícola. Seguimos para os elevadores para encontrá-los praticamente vazio. Uma ascensorista – por que diabos existem ascensoristas? – nos explicou que deveríamos descer no térreo, subir a rampa da esquerda e virar à esquerda e depois de novo à esquerda para encontrar a loja – Ah-há, aí está a resposta! Elas nos explicam o caminho!
E o shopping se estendia à nossa frente, pomposo como sempre, com seu enorme relógio de água ou óleo ou qualquer coisa, o qual desde pequeno eu sempre gostei de olhar. Em meus sete, oito anos de idade, ir para o shopping Iguatemi depois da Hebraica era como ir à igreja para os católicos – programa dominical obrigatório. E a diversão não era se sentar em banquinhos e rezar ou confessar para padres – não, muito melhor! Andávamos pelo Shopping todo, ora comíamos lá, ora não, sempre observando o grande relógio, que marcava o tempo, o tempo todo, registrando cada momento da minha vida com suas águas azuis, vermelhas, verdes, amarelas… A cor dependia só da época do ano. E no natal tínhamos de ir para procurar presentes e ficar por dentro de absolutamente todas as decorações de natal do Shopping, de ponta a ponta (haja falta do que fazer!).
Pode ser imensamente inútil, uma representação da capacidade ociosa-criativa de um ser humano, mas, de qualquer forma, aquele complexo marcador de tempo nunca deixou de me impressionar ou a qualquer um dos vários freqüentadores do Shopping.
Chegamos à loja, deixei meu pai lá – ver a atendente trocar as linhas não era uma atividade muito divertida – e fui perambular – encasquetado com o mistério de “Por que só mulheres têm o Samsung Voicer Fashion?”. Seria por que é fashion? –, uma das melhores coisas a se fazer quando se está em um Shopping e com dinheiro sobrando, coisa que, desafortunadamente, eu não tinha. Observava as pessoas: madames em seus vestidos de última moda, de seda, às vezes, ou até tecido sintético, óculos escuros, bolsa, sapatos de salto, bronzeadas em câmaras especiais, algumas com chapéus, outras não, homens bem vestidos com seus Armanis, usando Hugo Boss e tudo mais, levando seus pequenos filhinhos de seus cinco ou seis anos, já mais bem vestidos que meu pai.
E as pessoas me encaravam. Bom, claro que tinham de encarar. Imagine, um garoto vestindo uma calça Jeans do Brás, uma jaqueta jeans velha, suja e pequena – a qual eu amo – de procedência duvidosa, camisa de marca Meidin Peruíbe e tênis velhos e sujos, de sola descolando – os quais eu também amo, são os melhores tênis que eu já tive! – andando pelo meio do ricos e famosos, no Shopping Bervely Hills SP tinha de ser olhado até com asco. Mas, fazer o quê? Aquele Shopping é outro patamar.
Muito pode ter mudado desde pequeno, mas uma coisa é certa: ele continua para poucos. Olhando os preços, devo ter ficado pálido, azul, roxo, vermelho, verde, amarelo, anil, violeta, laranja, rosa, o arco-íris fulgurava em mim. Calças Jeans a 220 reais, a mais barata (e pensar que paguei 20 na minha…), carteiras de 999 reais, blusas a 1400 reais, malas, sapatos de 2000 reais! Quem gastaria todo este dinheiro em sapatos, meu Deus do céu?
Passei pelos chocolates. 100 gramas, 55 reais. Bombons a 100 reais, 150 gramas. Assustador. Comeria com pesar este chocolate, e com certeza levaria mais de dois meses para comê-lo, pois este é o tempo que levaria para pagá-los com minha mesada…
Mas, apesar de preços aterradores que certamente povoam os pesadelos do Tio Patinhas – a não ser que ele seja dono do lugar –, o Shopping Iguatemi não deixa de ter seus atrativos. Invenções mirabolantes, lugares chiques e tudo mais.
Por exemplo, devo citar o banheiro do Shopping. Fui lavar as mãos e, caipira como sou, apertei o jato de sabonete líquido até não poder mais, e descobri que era por um sensor fotoelétrico… Do mesmo modo era o secador de mãos. Não gosto deles. São convencidos demais, como se dissessem “Há, há, se sua mão vai secar ou não, depende de mim e só de mim!”. Prefiro o bom e velho papel higiênico, humilde, milhões de vezes melhor e muito mais rápido que o convencidão lá.
Entrei em uma loja de quinquilharias, onde havia umas placas de metal com coisas de ferro em cima, as quais você usava para montar estruturas mirabolantes, que, devido ao magnetismo, se mantinham estáveis. Do mesmo modo havia um par de bolas magnetizadas que se atraíam, se separadas. Fucei tanto quanto pude antes de se tornar incomodo, e comentei que todos deviam fuçar naquilo – e, de fato, fuçam mesmo.
Segui adiante. Lojas com xícaras especiais, jarras, chaleiras, tudo de metal, plástico ou porcelana, pintadas a mão ou não, com ou sem arabescos.
Parei em frente a uma loja de brinquedos. Inevitável. Estavam à venda os bonequinhos dos Cavaleiros do Zodíaco! Em todo o seu esplendor, com armadura e tudo mais – ainda caros, como antigamente. Os cavaleiros de ouro e de bronze. Ah, minha infância perdida! Encontrei-a de novo, como na propaganda do Boomerang, aquele canal de desenhos antigos, na qual há crianças vestidas como adultos olhando para a tv, como se tivessem rejuvenescido. Ah… Bons tempos nos quais lutava para conseguir os cavaleiros. Juntávamos dinheiro para caramba para conseguir comprar um deles, enquanto vinha aquele maldito riquinho com a coleção inteira em uma mala, na qual não podíamos tocar… Mas tudo bem, usávamos os nossos, destruíamo-nos até a morte, já que eram falsos mesmo, comprados em feira.
E logo acima dele, bonequinhos do Hellboy, collection items, como se diz hoje em dia. Entrei na loja. Jogos do Playstation absurdamente caros me chamaram a atenção, mas, mesmo assim, já cor-de-burro-quando-foge ao ver os preços, encontrei mais um item da minha infância. Um boneco de pelúcia de Babar, o elefante. Ah, mais momentos de belas reminiscências, quando voltava da escola e ligava a tv na rede Cultura para acompanhar de perto todas as aventuras de Babar – o qual passa hoje no HBO Family – seguido por Beakman. Bela infância, quando a tarefa de casa mais preocupante era fazer um desenho e imaginar o que você faria se estivesse em cima de uma árvore fugindo de um cão feroz.
Mas o que mais me impressionou foi uma espécie de relógio de madeira, composto por rampas e uma alavanca, que leva bolinhas demarcadoras de tempo até seus andares, e quando chega à uma hora, todas as bolinhas descem e caem, voltando ao início… Uma amiga minha tem um desses, e eu poderia ficar horas olhando aquilo sem me cansar. O tempo não pára, e aquilo, além da música do Cazuza, é o que mais prova isso. Preço: 795 reais. Uma facada no coração. Um ano e meio de mesada. Um dia, se ficar rico, ainda hei de comprar aquele relógio! É uma meta pessoal!
Não sei como o inventor conseguiu pensar naquilo, um mecanismo tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexo, todo calibrado, um mínimo erro poria fim a todo o sistema, em um efeito borboleta. Eu nunca pensaria nisso. E, mesmo se pensasse, creio que nunca conseguiria colocar em prática.
Juntei-me a meu pai depois, e fomos embora daquele lugar; Burguesópolis, o nome verdadeiro daquela pequena cidade de burgueses, cercada por paredes, como um verdadeiro castelo de nobres, onde parte da minha infância está e sempre estará guardada, nos menores detalhes.
OS: Não caiu uma tempestade naquele dia. Uma garoa besta foi tudo, e o céu se abriu logo depois, com o mesmo marasmo.
Nota do autor, outubro de 2020: se você achou que Jeans de 220 reais não são realmente caros, considere que houve uma pequena inflação em 16 anos. Talvez, em valores atuais, sejam algo em torno de 800 reais? Bem, não sei dizer, mas aquele shopping continua bem caro…
Ah, sim, e caso queira saber, eu nunca comprei aquele relógio. Na verdade, nunca mais o vi para vender. Acho que preciso voltar a procurar…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais