Claramente Chato
Eu estava esperando meio agoniadamente a minha namorada chegar de São Paulo, quando, de repente, ouço o barulho da porta abrindo. Seria ela, chegando mais cedo do que o esperado e me fazendo uma surpresa? Mas, como ela tinha a chave? Ela deveria tocar a campainha… De qualquer forma, dou animadamente um oi!, esperando ouvir de volta o seu doce oi, e me deparo, na sala, com o…
– Chato!
– O que foi aquele oi todo meloso ehm? To te estranhando!
– Como você entrou aqui?
– Com a chave!
– E de onde você tirou a chave?
– Subornei a antiga dona deste apartamento.
Eu sabia que deveria ter trocado a fechadura! Droga!
– Mas tenho coisas mais importantes que estas frivolidades a tratar.
Quando ele começava com aquele vocabulário relativamente culto, era porque vinha alguma chatice pela frente.
– Mempresta teu celular?
– Pra quê?
– Preciso ligar pra minha operadora.
– Mas por que você não usa o seu?
– Porque tá sem bateria! Duh! – respondeu, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, e foi logo metendo a mão no meu bolso.
– Ei, olha a mão boba! Desde quando temos intimidade o suficiente para você ir enfiando a mão assim no meu bolso?
– Depois daquele oi, tenho mais do que a intimidade necessária – retrucou, pegando o meu celular e ligando para a operadora.
Sentei de volta no computador e fiquei só esperando; ia ser divertido.
– Disque 1 para não sei o quê, 2 para não sei o que lá, 3 para ouvir mais musiquinha, quatro para se explodir… E cadê a opção falar com o atendente? Cadê aquela lei que diz que precisa obrigatoriamente ter esta opção no menu inicial? Vou ligar pro PROCON e reclamar!
– Como assim?? Eu selecionei a opção e deu ocupado! Mas que absurdo! Vou tentar de novo!
E foi a segunda vez. E pela segunda vez caiu.
– Eu não me conformo!!!
Tentou uma terceira.
– Mas que saco ficar segurando o celular no ouvido, ehm? Bem que você podia ter um daqueles negócios de pôr no ouvido, com bléquitufi.
– Blultúfi, não bléqui. E eu não tenho.
(Na verdade, eu tinha um fone de ouvido, mas por que facilitar a vida do chato? Mesmo infernizando a sua vida ele continua vindo atrás de mim!)
– Mas que celular de pobre!
– Então use o seu, folgado! – reclamei, e tentei pegar o celular, mas ele não deixou.
Por fim, um atendente pleonasticamente atendeu.
– Bom dia, em que posso estar ajudando a senhora?
O chato tampou o microfone, ignorando o erro de sexo.
– O que essas pessoas têm com essa droga de gerundismo?
Depois voltou.
– Oi, eu quero fazer uma reclamação. Eu tenho um bônus pra ligar pra celulares desta mesma operadora, mas eu fui ligar hoje, e em vez de descontar do meu bônus, descontou do meu crédito normal.
– Deixe eu estar vendo aqui… A senhora tem um real de crédito normal e mais dois de bônus especial. É isso?
Tampou o fone novamente.
– Você só tem isso de crédito? Dez vezes mais celular de pobre!
– Então pare de usar!
– Desculpe, estava falando com um pentelho aqui do lado. Então, o meu celular não é este, este é emprestado. O meu está descarregado e…
– Sinto muito, senhora, mas a operação precisa ser feita do seu celular. Vou estar pedindo pra senhora estar ligando de volta quando tiver ele em mãos. Muito obrigado por contar conosco e até a próxima ligação. Tu-tu-tu-tu-tu…
– É senhor! SENHOR! E pare de usar o gerundismo, seu idiota! – urrou ele e arremessou o meu celular contra a parede. Felizmente, meu curso extra-rápido de cinco minutos by iutubi de fung-ku serviu para alguma coisa, e eu saltei a tempo de segurá-lo (mas não de evitar a queda, e acertei metade das costelas na escrivaninha e a outra metade da cômoda. Passei os próximos dois minutos em estado letárgico no chão, mas logo voltei – afinal, ainda sou imortal).
Quando voltei, estava o chato a caçar carregadores por toda a minha casa, tentando ligar o celular dele.
– Não adianta, eu não tenho carregador do seu celular! Não é nem da mesma marca!
Ele me ignorou totalmente e seguiu; pegou o fio da minha fontezinha de água (que coisa de bicha¹!), cortou, descascou, desmontou o celular, ligou um lado do fio na entrada da bateria, e a outra na tomada. Saíram algumas faíscas, mas eu estava tão impressionado com a Magaivereza do chato que ignorei. Por fim, o telemóvel a carregar, ele tornou a ligar para a operadora.
Como de costume, só foi atendido na terceira vez.
– Bom dia, em que posso estar ajudando a senhora?
– SENHOR! EU SOU HOMEM, PELO AMOR DE DEUS!
– Desculpe. Em que posso estar ajudando o senhor?
– Eu tenho um bônus pra ligar pra celular desta mesma operadora, mas eu fui ligar hoje, e, em vez de descontar do meu bônus, descontou do meu crédito normal.
– Deixe eu estar vendo aqui… O senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. É isso?
– É. Antes eu tinha 20 de crédito, mas perdi ligando prum celular da mesma operadora!
– Mas o senhor precisa primeiro gastar o seu crédito normal para depois gastar o bônus.
– Como assim?
– O senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. Precisa gastar primeiro o crédito normal pra depois poder gastar o bônus.
– Isso eu já entendi! Eu só não entendi por que eu tenho de gastar os créditos primeiro!
– O senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. Precisa gastar primeiro o crédito normal pra depois poder gastar o bônus.
– ISSO EU ENTENDI! – berrou. – Você não concorda comigo que é meio absurdo eu ter de gastar os meus créditos normais primeiro para depois poder usar o bônus? E se eu quiser ligar para outro celular que não o desta operadora?
– Ééé… Não vai poder mesmo, né? Mas o senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. Precisa gastar primeiro o crédito normal pra depois poder gastar o bônus.
– Ai, meu Deus!
– É, eu sei, é difícil de estar entendendo, mas eu vou estar tentando explicar de novo… O senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. Precisa gastar primeiro o crédito normal pra depois poder gastar o bônus.
– Tá bom, eu entendi. Quer dizer que eu não posso usar o bônus até acabar o meu crédito normal. E isso acontece porque está pra cair o meu crédito novo, certo?
– Isso. O senhor tem…
– Tá bom, ta bom! Quanto falta pra cair o crédito novo?
– Uma semana.
– Então eu vou ter de escolher entre ligar para o desta operadora com o meu bônus ao custo de acabar com os meus créditos normais e consequentemente não poder ligar para ninguém de outra operadora, ou então guardar meus créditos para, durante a próxima semana, eventualmente ligar para alguém de outra operadora, mas não poder ligar para ninguém desta operadora?
– É, eu sei, é difícil de estar entendendo, mas eu vou estar tentando explicar de novo… O senhor tem um crédito normal de 2,39 reais e mais 278,53 de bônus especial. Precisa gastar primeiro o crédito normal pra depois poder gastar o bônus.
– Ai, meu Deus! Tá bom! Brigado! – e desligou o celular (mas sem tanto efeito quanto seria possível, porque não tem como bater o celular, só apertar o botão). – Mas que absurdo! Você ouviu?
– Ouvi.
– Vou ligar pro PROCON! Não me conformo! Deixa eu ver na internet o número do PROCON – disse, mas provavelmente apenas para parecer relativamente desencanado a respeito porque, como eu descobri depois, o número do PROCON estava entre os 10 mais discados de sua lista.
Nisso, a minha porta rangeu, como se estivesse sendo aberta, e eu ouvi um “Oi!” meloso vindo da sala, seguido de: “A porta estava aberta!”. Peguei meu celular, corri, peguei a carteira e a chave de casa e empurrei minha namorada para fora, gesticulando que o chato estava em casa. Com isso, fugimos o mais rápido possível.
Do lado de dentro, o chato ligava para o PROCON.
– Disque um para reclamar seus direitos de consumidor, disque dois para chamar a investigação do PROCON, disque três para conhecer seus direitos de consumidor, disque quatro para prestar queixa a um estabelecimento de comércio, disque cinco para finalizar a sua ligação. Tu-tu-tu-tu-tu…
É. Não havia o item “Falar com um dos nossos atendentes”.
– MAS QUE ABSURDOOOOO!!!!!!!!!
Nota do autor, setembro de 2021: curiosamente (ou não), o Chato passa por muitas situações pelas quais eu passei. Neste caso, na época de faculdade, eu tinha um celular pré-pago, e era sempre essa lenga-lenga de bônus disso, bônus daquilo, naquela época estranha em que você poderia ligar meio que de graça para a própria operadora, mas não para telefones de outras operadoras ou estados. Hoje em dia, as coisas mudaram demais, e tudo o que você precisa é um uai-fai para ligar pelo uatisapi.
¹ (Nota do autor, 2021) Só para reiterar, o personagem Chato tinha de ser, logicamente, homofóbico (afinal, ele é chato e implicante, não é?)(ah, sim, ele é homofóbico por ter sérios problemas pessoais de sexualidade não resolvidos, mas isso fica para outra história), mas as crônicas originais pegavam um pouco pesado neste quesito e eu dei umas cortadas (especialmente porque se não seriam irritantes demais, para não mencionar o crime, mesmo sendo um personagem fictício), mas um ou outro comentário tem de permanecer, ou ele perderia a sua característica. Assim, por favor, lembrem que o chato é apenas um personagem e eu não compartilho das suas opiniões.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais