No supermercado com o chato
Chego à casa do chato às dez horas da manhã, e, percebendo que ele não tinha absolutamente nada na geladeira, saímos para fazer compras.
– Como que você não tem nada na sua geladeira? Como que você consegue ficar com ela vazia? – perguntei, inconformado.
– Eu passei os últimos dias comendo na sua casa, lembra?
– E daí? Ela deveria estar cheia por isso!
– Então, a comida toda estragou por causa disso. Na verdade, é você quem deveria me pagar.
Preferi ignorar.
Andamos pelos corredores, e ele faz tantos, mas tantos comentários esdrúxulos que eu não saberia nem colocar no papel. Como de costume, reclama da disposição dos produtos, da falta de um, do excesso de outro, do fato de ter sempre uma embalagem aberta ou um “imbecilzinho” (suas palavras) comendo alguma coisa, de ter coisa fora do lugar…
– Tem um chester no meio da cebola! – exclamou.
– Pelo menos já vem temperado.
…e os funcionários, e o chão, e a iluminação, e tudo mais. Não acabava. Por fim, ele vira para mim, tendo cansado do tópico, e resolve reclamar de mim.
– E esse anel aí?
– Não vem falar do meu anel! Você vai casar, também vai usar!
Ele ia retrucar, mas desistiu, porque, realmente, apesar de não estar usando um de noivado, logo ele estaria com um de casado, e voltou a reclamar dos produtos.
– Olha só – comentei –, margarina de mel!
– Como que é isso?
– Não sei, mas é uma margarina com gosto de mel. Acho que alimentam as vacas com pólen…
– Oba, amostras grátis! – exclamou ele.
– Não, não faz isso! – segurei.
– Por que não?
– Eu nunca sei o que falar para a mulher quando eu não quero o que ela tá vendendo.
– Ela só te deu pra provar. Se você não gostar ou não quiser comprar, a culpa não é sua!
– Mas mesmo assim, eu me sinto meio…
– É de café.
– Esquece o que eu disse. Agora eu quero.
Mas é claro que eu fiquei sem jeito depois que peguei o negócio, sem ter o que falar (acabei comentando sobre a procedência do café – “A marca é Santa Catarina? Então ele vem de lá?”, “Não, vem de Campo Mourão”, “Ah, olha só, eu tenho um primo lá…”), e acabei levando um pacote para mim, com um sorrisinho sem jeito, só para fazer a amostreira feliz. Depois, quando achei o primeiro lugar vazio, coloquei o saco lá, sob reclamação do chato.
– Coloca no lugar certo!
– Eles têm gente pra fazer isso! Eu to só garantindo o trabalho deles¹! E se eu levar de volta, a moça vai ver que eu não quis!
Finalmente, fomos para os caixas.
– Você já reparou que não tem como pegar um carrinho bom?
– É impossível. Aposto como algumas religiões novas aí devem dizer que é isso que você encontra no paraíso. Descanso eterno e carrinhos que funcionam.
– Eu quero dizer, não tem um que não esteja com todas as rodinhas boas. Sempre tem uma que pega. Ou duas, Ou três. Uma vez eu achei um que não se mexia, você tinha que arrastar ele. Sem mencionar quando tá quebrado aqui e… Pelamordedeus! Quiquiéisso?
– Algo que alguém muito tempo atrás resolveu chamar de fila. Acho que o conceito é novo pra você, mas…
– Eu sei o que é! O queu tô falando é o tamanho delas. Olha isso!
– Usa o caixa rápido, sempre o caixa rápido!
– Mas olha o tamanho da fila do caixa rápido! É gigantesca!
– Mas é uma fila pra vinte caixas, e todo mundo vai com pouca coisa. O caixa rápido é sempre mais rápido.
– Ah, não é não. E sempre tem um quadrúpede que vai com mais de vinte itens.
– Convenhamos… O caixa rápido tem esse nome por algum motivo… Eu não sei qual pode ser, mas será que talvez pelo fato dele ser… Rápido?
– Pelarmodedeus, tudo que você quer fazer é fazer umas compras rápidas para abastecer a cozinha, e o que acontece? O supermercado tá entupido! Em todo esse mês, não teve um dia que eu não tenha pegado ele cheio!
– Como que você veio ao supermercado se você se alimentou basicamente da minha comida?
– Eu ahm… Gosto de pesquisar os preços. Mas mesmo assim, isso não justifica! É um absurdo!
– Sim, é um absurdo, eu já sei. Mas que o caixa rápido é mais rápido, é sim.
Ficamos um tempinho em silêncio, apreciando a musiquinha maldita de supermercado, e, quando eu finalmente estava comemorando os trinta segundos nos quais o chato não abrira a boca, ele evitou bater seu recorde (31”21’”).
– Sabe o que eu estava pensando?
– Senta que lá vem merda… – murmurei.
– Se uma pessoa pega um cartão de crédito e usa pra pagar a conta do outro cartão de crédito. Já pensou nisso? Em janeiro, você paga com o um, mas em fevereiro, você paga a conta do um com o dois, e em março, a conta do dois com o três, e em abril…
– Tá, peguei a ideia.
– E aí você pode ficar por não sei quantos anos até começar a pagar! Já pensou nisso? E, se bobear, de repente a firma vai à falência e você não precisa pagar nada!
– Você não pode fazer isso. Um cartão não pode pagar o outro, a não ser que você pague juros.
– Ah, mas por quê?
– Porque algum espertalhão com certeza já pensou em fazer isso.
– Que absurdo… E a minha ideia de uma firma que invista o seu dinheiro por você…
– Já existe e não adiantaria nada se a gente tentasse porque a gente não tem capital de giro nem funcionários bons nem palpites milagrosos.
– Ah… – suspirou ele. – Olha só, eu já tô nessa fila há uns vinte minutos!…
– Cinco.
– E aquele cara, que chegou depois de mim naquela fila ali, já está passando…
– Quer dizer, chegou ao caixa logo depois de você entrar no supermercado…
– Enquanto eu estou aqui nesta fila do caixa supostamente rápido! Isso é um…
Mas o tããnan indicando o número do caixa – 31, sempre 31 – impediu que ele terminasse a frase.
Rapidamente ele passou as compras, murmurando que achava um absurdo o fato de ele ter passado meia hora escolhendo os morangos para vir a mulher do caixa e arremessar eles de qualquer jeito do outro lado. E, quando ele os embalou e cuidadosamente colocou em um cantinho, ela ainda teve a pachorra de jogar o queijo por cima. Que absurdo!
Por fim, ele retirou a carteira do bolso.
– Sabe, eu não sei o que seria dos homens sem bolsos… Quer dizer, as mulheres usam bolsas, sabe, pra guardar todas aquelas porcarias, mas o que a gente faria sem bolso?
– Nada. Seria o fim do mundo como a gente conhece.
– Exatamente! Não dá pra sair por aí andando de bolsa, e as mochilas são grandes demais pra tão pouca coisa. Agora, o bolso… Foi A invenção. Dá pra enfurnar tudo que é possível lá… Olha só o que eu carrego no meu! Tem até o meu almoço de hoje e… O sanduíche da semana passada.
Lancei um olhar de puro asco pro sanduíche verde e gosmento.
– Eu não conseguiria viver sem bolsos.
– Nem eu… – comentei, depois de me recuperar do choque. – Agora, o que seria bom era cuecas com bolsos… Isso sim. Aí acabaram os problemas. Dava pra ficar o dia inteiro em casa só de cueca.
– Cueca boxer, por favor.
– Ou samba canção, claro.
– Calção.
– Calção ou canção?
– Não sei. Ninguém sabe ao certo. De onde surgiu esse nome, afinal?
A atendente do caixa (“Sou um funcionário temporário, tenha paciência no meu horário!”, estava escrito na camiseta) tossiu, como se para lembrar que ele tinha de pagar, e o chato olhou a conta na tela – que absurdo! – e vasculhou a carteira à procura do cartão.
– Ahm… Recusado.
– Tenta esse.
– A máquina não tá funcionando.
– E esse?
– Venceu.
– E esse?
– Recusado também.
– Mas que absurdo! Trocentos cartões, e eu não posso usar nenhum! Mas que droga! Agora… O que eu faço?
Xiiii… Já sei pronde essa estrada leva…, pensei.
– Será que você pode me emprestar dinheiro?
Eu lancei a minha melhor cara de “Fazer o que, né?” e peguei a minha carteira do meu bolso mágico para pagar. Com dinheiro, não cartão.
– Sabe o que eu sempre quis saber? – comentou o chato, enquanto íamos embora. – Quem é o cara que fez os desenhos das notas? E o que é essa droga de cara na frente? A estátua da liberdade versão paraguaia?
– Dois mistérios insolúveis da humanidade… Assim como o dia que você vai me pagar tudo que você me deve.
– Ah, não vamos começar com isso! Você sabe que dinheiro pode estragar amizades!
– Especialmente quando eu passar a morar debaixo da ponte porque você acaba com o meu dinheiro!
– Viu? É esse o tipo de atitude absurda que um consumista tem!
– Consumista?
– Isso mesmo! Eu esperava mais de você! Mas que absurdo!
E, pela primeira vez na vida, o chato caminhou para longe de mim por vontade própria, invertendo, pela primeira vez na história da humanidade, os nossos papéis.
Se eu tivesse que desembolsar só R$ 37,96 quando eu quisesse que isso acontecesse, bem… Acho que até que vale a pena!
E saí assobiando Reindropis quipi folin on mai rédi enquanto caminhava, feliz, para fora do supermercado.
(Me imaginem cantando, bem desafinado, “Nofins uorii-IiII-In miiiiiiIIIiIIIiI!”)
¹ Este argumento não se sustenta. Por favor, quando estiver no supermercado e desistir de algo, recoloque-o em seu lugar.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais