O Calouro Chato (ou o Chato Calouro?)
Era a continuação daquele dia no qual Marla veio atrás do Chato (mas que começo deprimente!). Depois que eu finalmente consegui acalmar o coitado, que mais parecia um coelho assustado na sua toca, pedi emprestada uma camiseta de um amigo meu, de calouro (não me pergunte como eu consegui esse feito, nem eu sei), arranjei uma calça que servia no chato (o que foi praticamente impossível, eu tive até de ir a uma loja especial para achar algo curto como o de um bebê e largo como de um elefante), e pronto, ele parecia um calouro perfeito. Tudo isso arrumado, eu pude tomar o meu café da manhã (ou, pelo menos, minha tentativa de um) e seguir com ele para a faculdade. Vocês precisavam ver, o coitado tremia de tanto medo, imaginando a Marla em cada esquina (havia duas no caminho para a faculdade, notem), literalmente engolindo as pontas dos dedos (porque as unhas já haviam sido digeridas há muito).
– Agora, olhaqui, regras básicas: por mais irritado que você fique, não responde pro veterano. Só fala quando ele perguntar. Faz tudo que ele mandar, se for leve; se for pesado, você recusa, mas com jeito. Entendeu? E anda de cabeça abaixada, olhando pro chão, que ninguém nem percebe que você tá aqui.
– Tá bom, tá bom. Mas calouro sofre, ehm?
– Você não tem ideia…
Na entrada, foi tudo tranquilo; nenhum veterano pegou a gente, e nós fomos para a tutoria com tranquilidade (nove horas era cedo demais pra, numa segunda-feira, qualquer um estar acordado). Lá, eu apresentei ele como o Chato, apelido de calouro, e falei que na verdade ele era um amigo meu que estava vendo como era a aula (isso só pra enganar o professor, pros outros ele era um aluno, senão iam chutar ele de lá).
Claro que três horas explicando não foram o suficiente para o chato entender como funcionava a faculdade, e mesmo assim, mostrar para ele ao vivo era mais do que o suficiente para ele começar com as suas chatices. Depois da tutoria¹, tínhamos uma hora e vinte de almoço (apesar de ela nunca terminar na hora), e nós ficamos um pouco na biblioteca, eu ainda tentando explicar ao chato como funcionava o método de ensino de lá.
– Quer dizer que vocês têm quinze horas para morgar toda a semana?
– Não! A gente tem quinze horas para estudar! Nesse tempo livre, a gente estuda!
– Mas você não precisa ficar na faculdade?
– Não se eu não quiser.
– E nem tem presença nem nada assim?
– Também não.
– Então que raios de método é esse?
– É o PBL! Será que você não entende? Você estuda sozinho…
– E como você aprende?
– Primeiro, estudando sozinho. Segundo, com as sustentações práticas e teóricas. E indo pro hospital…
– Pro hospital? No primeiro ano e vocês já vão pro hospital?
– É, mas…
– Mas vocês não sabem nada! E se vocês receitarem algo errado? E se vocês matarem alguém?
– A gente só observa! Ninguém receita nada! A gente não pode receitar, não tem nem o bloquinho nem o carimbo com o CRM!
– E como vocês aprendem só observando?
– Ai, meu Deus, desisto!
– E esse jaleco aí?
– Que que tem o meu jaleco?
– Quer dizer, olha só mas que coisa porcaria… Que tecido é esse? Taqui Tel? E esse símbolo, não é nem bordado!
– Eu não posso fazer nada, quer dizer, realmente podia ser melhor, mas a gente é do primeiro ano, então…
– E essa camiseta, falando nisso? Olha que lixo! Se eu me mexer um pouco mais, ela rasga sozinha!
– É, eu sei, mas pelo menos não esquenta…
– E a sua? Não vai comprar uma nova nunca não?
– Eu não. Me recuso a…
– Pelamordedeus, como você aguenta usar calça aqui? Essa cidade é um inferno!
– Você se acostuma – murmurei, meio de saco cheio.
No final, não tivemos escapatória e tivemos de sair pela porta da frente da biblioteca; o chato seguiu minhas dicas, mas não adiantou nada; tinha uma fila de veteranos, apenas esperando a gente sair para fazer pedágio.
– Mas isso é um absurdo! – exclamou.
– Quer ficar quieto? Quanto mais você reclamar, pior é!
– Ei, Casa, que que teu amiguinho aí tá falando? – perguntou um deles, que eu não sabia o nome e também não fazia questão de saber.
– Ele…
– Ah, olha só o tamanho do moleque! – exclamou outro. – E é mó redondo! Parece um Mâfim!
– Parece um duende.
– Uma bola de praia!
– Calouro, qual é o teu nome? – indagou ele, e eu rezava para o chato manter a calma.
– É… – ele começou.
– Cha…
– Não, Casa, deixa ele responder por si próprio. Que que você é, a babá dele?
– Calouro bebê! – anunciou outro.
– O meu nome é chato! – disse um pouco alto demais o meu companheiro, por fim.
– Mas por que chato? Você não é chato. Teu nome agora é Bola de Praia.
– Wilson! O Wilson do náufrago!
– É isso aí! – riu o outro, pegando uma caneta permanente para escrever na camiseta dele.
Imediatamente riscaram o nome anterior e escreveram Wilson. Aí desenharam a bola. Depois, escreveram na frente, na altura do mamilo dele, “Aperte: Eu sou chato!”.
Claro que eles morriam de rir com isso, e o chato apenas oscilava de cor, do branco para o vermelho…
– É o guru do Gugu!
– É o fofão!
– É o George Constanza!
A cada vez que falavam um nome, o apelido mudava, eles zoando da cara do chato, e esta cada vez mais roxa, mais rosa, até que…
– ISSO É UM ABSURDOOOOOO!!!!!
Pronto. A frase de transformação. Em questão de segundos, a cena inteira congelou, eu me movia devagar, a minha voz estava rouca, daquele jeito estranho, e eu berrava: “Fujam!” pros outros calouros, enquanto os músculos cresciam e o chato se transmutava no… Bizarro Rulque!
Parecia aquela cena do Matrix. O chato no meio, milhares de veteranos voando por todos os lados, eu correndo para o meu apartamento. Se ele saiu voando depois, eu não sei. Só sei que me escondi em casa até o dia seguinte, de manhã, quando aulas foram mudadas para dentro do hospital, porque tinha cinquenta veteranos lá, todos machucados. E do chato? Nem sinal. Provavelmente ia ficar sumido por uns três dias, como era de costume.
E, claro, eu tive de fazer pedágio² naquele dia…
Nota do autor, Agosto de 2021: apesar de tudo, tenho boas lembranças da minha época da faculdade.
Mas não da época do trote.
¹ (Nota de 2021) O método de ensino de medicina da PUC é pelo PBL, um método construtivista em que vemos e discutimos casos clínicos e, a partir dele, estudamos anatomia, fisiologia, farmacologia etc..
² (Nota de 2021) Para quem não passou por isso, pedágio era ficar na rua pedindo dinheiro para… Não tenho certeza, mas provavelmente pagar as festas dos veteranos.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais