O chato
O chato era um cara literalmente pentelho. Não que ele não fosse útil em certas ocasiões, claro, mas o problema era que ele era um tanto quanto, digamos, detalhista. Como se diria em alemão, kleinlich, o que é algo parecido com “cheio de pequenices”, o chato era um daqueles caras que olhava os detalhes de tudo, reclamava das menores coisas, na maioria pequenas e fúteis, invocava com elas, não deixava quieto. Além disso, era cheio de, digamos, reservismos.
Como por exemplo, o chato só ia ao banheiro público quando ele estava vazio. Tudo bem, é uma estupidez para qualquer pessoa sensata querer ir a um banheiro público com ele vazio, mas o chato, como bem diz o seu nome, era chato. Não fazia nada até que não houvesse ninguém. Sequer usaria o mictório se houvesse alguém na última cabine, a quilômetros de distância. Quando precisava, entrava, via se não havia ninguém. Se houvesse, lavava as mãos, olhava no espelho, ia embora, para fingir que não havia ido à-toa. Não houvesse, lá ia ele usar o banheiro.
Havia algo de útil nisso. Deste modo, o chato conhecia todos os banheiros possíveis e imagináveis do lugar. Por exemplo, se você quisesse ir, bem no meio de uma visita à estátua da liberdade, o chato lhe diria exatamente qual o banheiro mais próximo, ou o mais limpo, ou o mais confortável, ou o mais cheiroso.
Justamente por isso, o chato tinha preferências. Adorava os banheiros do Shopping Higienópolis, fechados de cima abaixo, sem que qualquer um pudesse vê-lo (Nota do autor, 2020: infelizmente, estes banheiros foram reformados, e o Chato não fica mais feliz lá. Mas há certos prédios corporativos no Brooklin com este tipo de cabine que estão no primeiro lugar de sua lista de “Banheiros confortáveis para se ca…”). Sentia-se bem lá. Além disso, sempre conhecia qual era o banheiro menos frequentado, o que era, normalmente, o qual ele usava, o que me deixou algumas coisas úteis, como por exemplo: o mais limpo é sempre o último box; o banheiro mais distante é o menos frequentado, com uma taxa de um visitante por hora, se tanto, de modo que o refil de sabonete e papel é garantido. Isso entre outras coisas.
Isso quanto ao banheiro. Não tenho nada contra o meu amigo chato ter algumas ressalvas em querer ir com privacidade no seu pequeno trono. O problema era também com outras coisas. Por exemplo, um dia estávamos nós dois conversando em um bar, no balcão.
– Eu terminei com a Janice.
– O quê? – perguntei eu, chocado. Chocado por dois motivos: primeiro, quem iria namorar o chato? Segundo, se havia alguém trouxa o suficiente para tal (sem ofensas, mas ele era realmente um chato), por que o meu distinto amigo cheio de pequenices iria querer terminar?
– Eu terminei. Eu não aguento o jeito que ela come os pepinos.
– Os pepinos? O que você tem contra os pepinos dela?
– Ela tem de descascar ele assim: uma parte com casca, outra sem. Além disso, ela faz em fatias redondas! Eu não suporto isso! E, como se não bastasse isso, ainda tira as sementes dele! Tira as sementes! Eu não acredito nisso!
– Nem eu! – suspirei.
– É como despedaçar a alma do negócio! É como ficar tirando as sementes da melancia com uma faquinha! – gritou ele, e um cara ao meu lado rapidamente engoliu a melancia que comia de sobremesa.
– É ultraje! – exclamei, pesando que justamente eu fazia o mesmo com aquela fruta.
– Quero dizer, é como usar o banheiro de deficientes!
– Mas, se a pessoa é defi…
– Não, é como não ser deficiente E usar o banheiro DOS deficientes! É ultraje! Mesmo que você esteja morrendo de vontade, apertado como se sua bexiga fosse explodir, é o banheiro dos deficientes!
– Mas se não tiver nenhum lá…
– Mas ele é PARA deficientes! Se você não é, não pode usar! Além do mais, àquela altura do chão (notem que o Chato era consideravelmente baixo), você se sente como numa estátua naquilo!
– Realmente, é ultraje! – exclamei ainda mais uma vez, pensando em usar o banheiro de deficientes só uma vez para ver como era.
– É como parar na vaga de deficientes! Usar o caixa preferencial! Aliás, sabe o que me deixa nervoso? Aqueles idiotas na fila de dez volumes com onze volumes! Nada pode me deixar mais irritado!
– Qual o problema? Um volume a mais, um a menos…
– Mas o caixa é para DEZ volumes! DEZ! Não onze, não nove! DEZ! – começou a gritar o chato.
– Quer dizer que você não pode usar o caixa de dez volumes se você tiver menos que dez?
– Não! O caixa de dez volumes foi feito para dez volumes!
– Isso muda todo o meu modo de ver o mundo! – exclamei ironicamente.
– E se tem mais uma coisa que me deixa irritado é tomar bebida sem colocar o protetor por baixo do copo!
Sorrateiramente eu roubei uns disquinhos da Brahma do meu vizinho ao lado para colocar sob o meu copo de suco.
– Quero dizer, você tem os malditos protetores para serem usados! E me diz uma coisa, qual a ideia de colocar gelo na bebida? Ou toma ela gelada por si só, ou toma ela quente! Para que colocar um cubo de gelo feito de água saída sabe-se lá de onde para gelar o negócio?
Não sei como, em um gole só, virando-me para o lado, eu consegui engolir os três cubos de gelo do meu suco e repentinamente me senti como se tivesse engolido um pacote de Hóus preta.
– E olhe aquilo, meu Deus! – berrou ele, levantando-se do seu banco (quase caindo no processo) e correndo em direção a um homem sentado em uma mesa. – Que tipo de pessoa come os amendoins um por um? Deve ser um louco! Se você come o amendoim – prosseguiu, metendo a mão na cesta de amendoins do homem – tem de ser assim, um punhado inteiro, e meter ele na boca! E olhe isso, para que o canudinho na lata, homem? A lata tem um buraco e a borda, você bebe por ali! Para que o canudo? Isso me deixa muito…
Mas, (in)felizmente eu nunca cheguei a descobrir como isso deixava o chato. O homem se levantou de uma vez só e, com um soco do seu punho de urso, jogou o meu amigo ao chão e quebrou uma cadeira em suas costelas. Rapidamente escapuli de lá, enquanto uma rodinha se juntava para bater naquele chato…
Tudo que sei é que o chato está até hoje no hospital. E o dano foi tão grande que ele tem de tomar refrigerante da lata por canudinho e comer amendoim, ou qualquer coisa do gênero, um por um. Além disso, não pode engolir nenhum caroço, e, machucado como está, vai ter de usar o banheiro dos deficientes por um bom tempo…
Nota do autor, outubro de 2020: Sempre gostei muito do chato, apesar de ele ser realmente muito chato. Acredito que ele ocupava uma parte importante da minha personalidade na época, que foi desaparecendo conforme eu envelheci e me tornei mais tolerante.
Mas, acredito, em breve ele deve voltar. Porque todos ficamos mais chatos, conforme envelhecemos, isso é fato.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais