Para viagem?
Sexta-feira era o meu dia de trabalho no AMA, fazendo consultas de emergência de pediatria. Sempre foi meu costume ler a ficha do paciente com a queixa antes, e fiquei muito surpreso ao ver o peso absurdo de um paciente anotado. Olhei mais detalhes, mas nao compreendi; ele tinha 11 anos e alguns meses e pesava o suficiente para uns tres adultos. Seria mais um caso igual ao do chines de quatro anos que já pesava seus 62 quilos?
E a queixa era das mais (mas não a mais) esquisitas que eu já vi: “Carência afetiva”.
- Bom, também, com todo este peso, deve ser difícil ter amigos. Provavelmente todos têm medo de ser esmagados ou comidos… – disse o meu colega, que havia visto a ficha comigo, dado uma risada e voltado para a sua sala, para poder atender.
Chamei pela senha, e, pelo corredor, pude ouvir seus passos se aproximando; o AMA inteiro era de uma estrutura de metal, e eu achava que, a cada passada, um rombo no piso era formado, pois o barulho era semelhante ao de um brontossauro esmagando um carro. O copo de água na minha mesa balançava, como no filme Jurassic Park, e eu comecei a ficar com medo.
O ser bateu na minha porta; eu mandei que entrasse. E, quando dei por mim… Não era ninguém menos que ele: o chato.
– Mas como raios você entrou na pediatria? – indaguei.
– RG falso! – ele disse, com um sorriso.
Deveria ser o primeiro caso de alguém falsificar o RG para se tornar menor de idade.
– Mas o pessoal não estranhou lá na frente?
– A princípio, sim, mas, depois de verem a minha altura e o laudo do meu médico…
Eu peguei para ler; em uma letra horrorosa, estava escrito que o chato era portador de uma doença chamada progeria, devido a qual ele aparentava ter uma idade muito superior à que na realidade possuía.
– E você ainda teve a pachorra de falsificar o meu carimbo e a minha assinatura?! – inconforinterroclamei.
– Veja bem, falsificar é uma palavra muito forte…
– Tá bom, tá bom – respondi, suspirando. Ele já tinha clonado meu cartão de crédito, já usava e abusava do meu dinheiro, já havia se passado por mim em um chat online ou coisa do gênero… Quem sabe se pelo menos com o meu carimbo ele achasse uma nova fonte de renda e parasse de me chupinzar? – Agora, me diga uma coisa, que raios você veio fazer aqui?
– Ueh, eu vim te visitar!
– Já não basta vir me perseguir todos os dias no posto?
– Eu não vou te perseguir! Eu vou medir a pressão e a glicemia! Você sabe, a mamãe tem diabetes e pressão alta e artrose e fibromialgia e mais umas sete ou oito outras doenças, então eu tenho de me prevenir. (Nota: se o CID10, o compêndio de doenças, considerasse chatice como uma patologia internacionalmente reconhecida, a mamãe chata teria 13 doenças no total, e não somente 12. Ou talvez 14, porque chatice congênita deveria valer por dois….) Eu soh esbarro em você por acidente!
-…
– Por sinal, que lugarzinho feio esse que você trabalha de sexta, ehm? Entrando aqui, achei que tava no morro do alemão, ladeado de favelas, o lixo jogado no chão, as pessoas seminuas andando no meio das ruas, um bando de maloqueiro nas motos… Quase me borrei de medo! (Nota: na realidade, não sei qual era o medo do Chato, porque ele, sem dúvida, era a criatura mais assustadora de todo aquele bairro. Mais até do que o Capitão Nascimento ou o Leão. Bastava escorregar no topo do morro, e ele viraria uma rocha rolante igual à do Indiana Jones)
– Isso, continua falando assim, e bem alto, que logo você nunca mais sobe o morro de volta!
– De qualquer forma, o lugar aqui dentro até que é bem confortável. Tem ar-condicionado…
– Se não tivesse, isso aqui viraria uma panela de pressão no verão.
– O que acha de tomarmos um café? Tem uma padaria que parece limpinha aqui do lado.
– E você não vai morrer de nojinho?
– Quem você tá achando que eu sou? O fresco do Michel?
E, vendo que não havia ninguém para atender, eu aproveitei meus minutinhos da tarde para fazer uma pausa para o café. Ou melhor; considerando que a queixa do meu “paciente” era carência afetiva, aquilo fazia parte do tratamento; portanto, era um café terapêutico e fazia parte da consulta.
Na padaria, chegando ao balcão, eu pedi um pão com manteiga; o chato, por sua vez, olhou com nojo para tudo ao seu redor e achou melhor pedir um chá, daqueles que jah vem no copo, sem limão e sem gelo, e ficar bebericando.
Sentei-me na banqueta; o chato tentou fazer o mesmo, mas, no momento em que o fez, com um salto, para conseguir fazer sua grande bunda chegar à altura do banco, a banqueta entortou com um guincho horroroso, levando-o ao chão com um estrondo (pessoas acharam que era um terremoto e, por instantes, até mesmo o pessoal do AMA ficou paralisado).
Envergonhado, o chato se levantou e tentou desentortar o banco; no entanto, por mais força que fizesse, de nada adiantava. Até ter uma ideia brilhante; saltou por cima do banco segurando-o com sua mão e, com seu peso, foi ao chão, puxando-o, quase como em um golpe de MMA; o banco soltou um novo guincho, desta vez entortando para o lado oposto; o chão tremeu com a queda do mastodonte; e, com outro guincho assustador, a barra de sustentação da banqueta se partiu no meio. O meu caro Sancho Pança olhou amedrontado para o dono do bar, que saiu dos fundos e veio em sua direção; jurava que iria puxar a arma e matá-lo. Eu, enquanto isso, não sabia onde enfiava a cara (e, no AMA, as pessoas continuavam com medo de um segundo terremoto).
O dono do bar era um negro alto, bombado, careca e de bigode; o chato, pequeno, gordo e indefeso, olhou-o como um rato olha um elefante.
– Esse banco custou 35,99 na promoção. Pode pagar, baixote!
O chato tremia tanto, que mal conseguiu levar a mão ao bolso; eu fiquei apenas olhando. Estava cansado de livrar a barra do chato e, desta vez, ele teria de se virar sozinho.
Contudo, para minha surpresa, ele conseguiu se recompor, pegar a carteira tirar algumas notas e pagar o homem, que, contando o dinheiro, desapareceu nos fundos. A vida no bar retornou ao seu normal, e o chato foi recobrando sua cor pouco a pouco, enquanto bebericava de seu chá, em pé.
Eu pedi um novo pão com manteiga; estava surpreso com o fato de o chato ter pagado sem pedir dinheiro emprestado e não falei nada. Soh pude perceber que, a cada mordida minha, ele parecia mais e mais angustiado.
– Para! Para tudo! Isso é um absurdo!
Pronto. Aquele era o chato que eu conhecia e não amava.
– O que foi agora?
– Eu não aguento ver você comendo esse pão sem beber nada. Moça, vê um café pra ele, vai. Eu pago.
– Mas o problema não é dinheiro!
– Pode deixar, eu sei que você tá preocupado com pagar as coisas do casamento, eu pago pra você.
– E eu vou por leite! – disse a moça do bar. – Porque eu tambem nao tava aguentando ver você comer esse pão no seco! Tem que ter café com leite!
Surpresa! Havia descoberto uma chata no bar!
– Tá bom, tá bom… – aceitei.
– Aliás, não sei o que aconteceu, que antes você era fissurado por café com leite, e agora soh toma café puro…
– Pois eh, eu virei adulto, neh… Ao contrário de certas pessoas…
– Como aquele amigo seu de faculdade que você me contou? – o chato indagou, inocentemente. Preferi não responder.
– Agora, o que é realmente estranho – falei, enquanto bebericava do meu café – é que você pediu só um chá, e absolutamente nada para comer. O que aconteceu?
Ah-ha! Sabia que você ia perguntar isso, mais cedo ou mais tarde! Por sinal, demorou pra perguntar, ehm? Mas, de qualquer forma! Eu vim aqui hoje justamente para lhe mostrar o resultado….
Ele se virou e começou a desabotoar a camisa; todos olhamos enojados, exceto, talvez, pela chata do balcão.
– Popará com essa sem vergonhice! Eu não quero ver resultado de nada que envolva você abrir a sua camisa!
Mas já era tarde; quando dei por mim, o chato havia aberto toda a sua horrorosa camisa amarelo gema (que, aparentemente, era fechada com velcro) e exposto a sua imensidão de pânceps, que havia diminuído consideravelmente para dar lugar a um mar de pele flácida.
Os olhinhos da moça no balcão brilharam.
– Ai, que horror!! Esconde isso! Eh resultado de que, ehm?
– Mas que raios de médico é você? Não tá vendo a cicatriz?
Com muito esforço enxerguei uma linha rosada no meio de tanta banha.
– Eu fiz uma cirurgia bariátrica! Pro seu casamento, vou estar novo em folha! Você vai ver! Já perdi 97 quilos!
E ainda assim tinha o peso de 3 adultos gordos…
– Pouco antes eu vou fazer uma abdominoplastia, vou comprar uma cinta e, no seu casamento, vou estar espetacular!
Eu não sabia o que dizer; na realidade, ninguém sabia. Ficaram todos em silêncio, apenas ignorando a conversa dos doidos. Em uma tentativa de retomar a normalidade, um novo cliente chegou e pediu um croassam no balcão.
– Para viagem ou vai comer aqui? – a moça indagou.
– Para viagem.
– Minha querida – disse o chato, com toda a sua polidez, não perdendo uma oportunidade de chatear. – Se me permite, você está usando o termo errado. O termo correto é “para levar”, e não “para viagem”. Afinal de contas, não necessariamente este senhor vai viajar, não é?
– Eh verdade! – a moça exclamou, com brilho nos olhos. – Puxa vida, minha vida inteira usei este termo errado!
Engoli o meu café inconformadamente. Era como assistir a um programa de encontro às cegas de dois chatos! Que diferença fazia, para viagem ou para levar? Era coisa de chato, mesmo!
A moça preparou o salgado, embrulhou-o, colocou-o em uma sacola e o entregou para o cliente:
– Aqui está, para levar – ela falou, frisando o levar. Em seguida, virou-se para o meu colega. – Sabe, gostei de você. Tome aqui um café com leite, é por conta da casa.
O chato aceitou, com orgulho (lógico, poderia estar mudado, mas nunca recusaria algo que veio de graça) e tomou um grande gole; repentinamente, ouvimos, do fundo, um grito:
– O custo de um copo de café com leite é de 35 centavos de leite e 20 centavos de café! Você vai descontar isso do seu salário, ehm, Maricota?
E o grande dono do bar surgiu diante de nós.
– T-tudo bem, chefe – titubeou ela.
– Ótimo, então. Agora, separe uns pães de queijo pra viagem para mim.
O chato, porém, estava se sentindo um novo e galanteador homem pós-cirurgico e, em um ímpeto de coragem, tomou outro grande gole, virou-se para o brutamontes e disse:
– Ei, seu grandão! Você não pode tratar ela assim! Além disso, não se diz para viagem, mas sim, para levar! E mais uma coisa…
Ele levantou o dedo; aproximou-se do homem gigantesco (ficando na altura de sua coxa e tendo de encará-lo lá de baixo); levou a mão à barriga; e falou:
– Onde fica o banheiro?
A moça apontou para uma portinha ao lado; o chato foi correndo; o dono pegou seu pacote de pães de queijo e foi embora; e o bar inteiro caiu em gargalhadas.
Dez minutos depois, o chato retornou, lívido, ainda suando frio.
– E aih, cade o grandao?
Todos riram novamente.
– O que aconteceu, baixote? Se borrou?
– Para a sua informação – ele falou, tentando impor respeito – eu fiz um novo tipo de cirurgia redutora e disabsortiva que diminuiu em 95% os meus intestinos. Aih, qualquer coisa gordurosa que eu como entra e sai imediatamente…
– Que nem pato!
– Que nem bebê!
– Hahaha!!!
As pessoas do bar não se continham; vexado, o chato saiu, todo acanhado, comigo ao seu lado (pois fiquei com dó do cavaleiro da triste figura). Jah estava saindo, quando a moça do balcão veio correndo em minha direção.
– Oh, aqui tem um sanduíche natural com pouca gordura – ela disse – e, no saco de papel, eu escrevi o meu telefone. Fale para ele me ligar!
E, conforme descemos a rua, olhando de volta para as portas de vidro, o chato pode ver a sua dama apoiada no balcão, lançando beijos aéreos para viagem.
Digo, para levar.
Nota do autor, setembro de 2021: isso quase aconteceu. De fato, certo dia eu fui a uma lanchonete no lugar onde trabalhava (que, sim, ficava no meio de uma comunidade e era exatamente como descrevi) e pedi dos pães com manteiga na chapa. A moça do balcão ficou tão inconformada que eu estava comendo a seco, que me fez um café com leite de graça. Acabei tomando, mesmo sem tomar café com açúcar. Nem leite.
E meu intestino não curtiu muito, depois.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais