Angus, o boi revolucionário
Pareceria uma fazenda como outra qualquer. Mas não era. A fazenda onde o pequeno Angus nasceu e foi criado era conhecida por produzir uma espécie de gado tão boa para abate, que, dizia-se, a carne derretia de verdade na boca, e até aqueles velhinhos sem dentes conseguiam comer, mesmo sem usar as dentaduras (o que é sem dúvida excelente em um mundo em que cada vez mais temos mais idosos e menos crianças).
Justamente por causa disso, as coisas eram diferentes com os pequenos bezerros.
Logo que nasceu, Angus foi para a escola de gado. Bem, não era nada de muito excepcional; encontravam-se todos no curral, onde ficavam guardados durante a noite, logo cedo, e a professora se punha diante deles, explicando tudo antes de irem para as aulas práticas no pasto, logo depois. A professora era uma vaca leiteira bastante velha, que na verdade já não produzia mais leite nenhum, e só permanecia viva ainda na fazenda porque, como ela parecia ser a única que conseguia tranquilizar todos os outros animais, os fazendeiros acharam que seria bom deixá-la por aí até que morresse de velhice.
Com todos organizados, olhando, atentos, para a professora, ela explicava duas das três coisas que todo gado deveria saber: primeiro, como pastar – o que não era difícil, era só procurar um pedacinho de grama mais ou menos verde, abaixar a cabeça, pegar a grama e mastigar. Logicamente, tinha um truque de engolir, deixar tudo em um dos estômagos, depois regurgitar e continuar mastigando por horas a fio, mas isso era um truque que os bebês aprendiam logo que nasciam, então não tinha lá muito o que ensinar.
Segundo, ela ensinava como espantar as moscas do traseiro sacudindo a cauda e da cara mexendo as orelhas e a cabeça. Novamente, também não tinha nada de tão mágico nisso, mas ela falava com uma propriedade que parecia haver uma verdadeira arte de espantar insetos irritantes.
O fato é que as vacas e os bois são os mamíferos mais estúpidos do planeta. É triste dizer isso, mas é verdade, e, para a velha professora, nunca lhe parecera tão verdadeiro quanto nos últimos anos. Cada vez ela demorava mais para conseguir ensinar aos seus aluninhos como pastar grama e espantar moscas (muitos confundiam com pastar moscas e espantar grama, e não era raro ela observar, nas aulas práticas, alguns deles tentando arremessar grama para longe com a cauda e pegar moscas com a língua, como se fossem sapos). Antigamente, no tempo de uma gestação, eles já sabiam como fazer direitinho; agora, parecia que levava duas, três, às vezes!
Ela tinha a sua teoria de por quê. Provavelmente era por causa da terceira coisa que ela tinha de ensinar, algo que esperava os bezerros já terem ao menos uma certa idade para poder explicar: o destino da vida dele. Esta era a terceira coisa que o gado aprendia, mas, em ordem de importância, talvez fosse… Bom, acho que seria a terceira mesmo, porque, no final das contas, se não soubessem pastar nem se livrar de moscas, eles morreriam antes mesmo de poder escolher o seu destino, então…
O destino do gado, naquela fazenda, poderia ser de quatro tipos: se você fosse uma jovem vaca de grande estirpe, iria se tornar uma vaca reprodutora. Se não fosse de lá tão boa estirpe, bem, iria se juntar à ralé e ser uma simples vaca leiteira. Por outro lado, se fosse macho, já teria dois destinos diferentes…
– Eu gostaria de poder dizer que vocês todos terão o mesmo destino, mas não. Alguns já o têm traçado desde que nasceram; outros, podem mostrar suas aptidões ao longo da juventude.
– Mas o que é que acontece com a gente, professora? – indagou Angus.
A professora o encarou longamente. Era um bezerro certamente notável; um dos poucos que perguntava alguma coisa durante a aula. Aliás, um dos poucos que parecia sequer estar prestando atenção. A maioria deles apenas a encarava com aquele olhar bovino pouco inteligente e, quando parecia que o silêncio já era demasiadamente longo, emitia um comentário bovino: “Uhmmmmmmmm”.
– Se você for de uma raça superior, de carne macia, você vai para os rebanhos especiais. Nele, você vai passar o dia sendo alimentado em um lugar fechado, onde é sempre frio, mas tem sempre comida, comida bem gostosa e bem gorda, onde você vai sempre escutar uma música agradável, vai receber massagem, vai fazer só o que bem entender, só comer, ou só dormir, ou comer e dormir e dormir e comer… Sua única preocupação na vida vai ser essa. Lá não tem moscas, nem sol quente, nem precisa se abaixar para comer, porque a ração está sempre lá, na sua frente.
Os bovinos soltaram um comentário razoavelmente excitado. Geralmente, este era o único momento da aula em que efetivamente prestavam atenção. E, no entanto, no dia seguinte a maioria deles não lembrava e ela tinha de explicar novamente por umas catorze luas até que aprendessem.
– Mas isso é para sempre? – Angus perguntou.
– Não – ela respondeu. – O grande problema é que ter uma vida boa dessas tem um custo: você vai morrer quando estiver gordo e suculento o suficiente para ser comido pelos humanos.
Angus pareceu assustado; o resto meramente emitiu um comentário bovino desinteressado.
– E qual é a outra opção?
– A outra, se você não for de uma raça tão boa, é continuar vivendo como todos nós vivemos: dormindo no curral, acordando cedo, indo pastar por aí debaixo do sol escaldante, espantando moscas, abaixando, subindo e descendo as planícies, voltando para o curral no final do dia, dormindo em um lugar quente e fedorento… E assim por diante. Mas, por outro lado, você vai viver por muito tempo, até estar gordo o suficiente para alimentar os humanos.
– Uhmmmmmmm – foi o comentário geral.
– E depois disso, professora?
– Como assim?
– Quando eu já estiver gordo o suficiente?
– Bom, os humanos vão chamá-lo para um matadouro, onde eles o matam de uma forma que você nem sente.
O pequeno bezerro arregalou os olhos. Os outros continuaram indiferentes – afinal, este sempre fora o destino do gado, então, por que se estressar?
– Eles matam a gente?
– Exatamente. E pelo que dizem, não dói nada. No caso dos de raça superior, é melhor ainda: você nem é levado para o matadouro. Para não ficar estressado, eles injetam uma substância para você dormir, e pronto. Quando você percebe, já está morto.
– Uhmmmmmmmm.
Mas Angus não ficou satisfeito; não só aquilo lhe parecia absurdo, como lhe parecia uma espécie de vida totalmente despropositada.
– E depois disso, professora?
– Depois disso… – ela falou, feliz e sorridente; era o primeiro bezerro que, em toda a sua vida, perguntava-lhe o que acontecia no pós vida de um boi. Sempre quisera dizer isso, dizer o que pensava a respeito, mas ninguém, nunca, quisera ouvir! Estava tão emocionada que, se vacas chorassem, ela já estaria derramando rios de lágrimas. – Depois disso… Nós vamos todos para o paraíso dos bois, onde tudo é grama verdejante para pastar, interminável e saborosa! E onde não tem sol escaldante, nem terra seca, nem insetos para nos importunar! Onde não faltam riachos para beber água! Enfim, tudo o que sempre quisemos!
Pela primeira vez, a turma toda da aluninhos pareceu bastante animada, e um ou outro até comentou que gostaria de ir logo para este tal de paraíso, que eles deveriam estar perdendo tempo à toa lá, se podiam estar em um lugar tão bom.
– Mas, professora, por que a gente só pode ir para este lugar depois que os humanos nos matarem? – tornou a perguntar o bezerro filósofo.
– Porque é assim que funciona. Nós temos de passar por uma vida de sofrimentos e provações… Até fazer o nosso sacrifício final e ir para o paraíso.
– Mas mesmo aqueles que não tiveram sofrimento nenhum, nem privação, que ficaram só no bem bom, sendo alimentados e tudo mais, vão para o céu?
A professora pensou um pouco. Que pergunta difícil!
– Acho que sim.
– Mas o que é melhor, então? Ficar aqui neste lugar que nunca tem mosca e sempre tem comida, ou ficar lá no paraíso, que também sempre tem comida e nunca tem mosca?
Ela parou para pensar novamente. Ora, mas que pergunta difícil! Que aluninho pensador e… Talvez um pouco impertinente!
– Bom, eu acho que…
Mas não conseguiram descobrir o que a professora achava. Uma espécie de sinal tocou, e todos os bois foram liberados para pastar nos campos, o que era o momento mais esperado: o momento de pôr em prática as aulas teóricas que haviam tido naquela manhã.
Angus tentou se afastar o mais que pôde dos seus amigos, indo para os confins da fazenda, até a ponta da cerca, de onde o vaqueiro mais próximo não parecia mais do que um ponto no horizonte.
Ficou parado, olhando para a grama diante de si: aquilo não parecia certo. Não parecia um destino certo para um boi. Tudo o que podia fazer era pastar no campo aberto, ou, se desse muita sorte na vida, pastar em um daqueles campos especiais, até que um belo dia alguém decidiria que ele estava bom para o abate, e ele seria morto. E, talvez, realmente talvez, ele fosse para o que a professora dissera que era o paraíso – onde ele iria fazer basicamente o que fazia naquele momento, só que sem o sofrimento cotidiano.
Não, não parecia certo! Ficar a vida inteira preso dentro daquela cerca? Sem nunca descobrir o que havia do outro lado? Sem ter certeza do que havia depois? Não, não podia! Tinha de dar um jeito de escapar.
E Angus foi cultivando esta ideia, dia após dia falando com seus amigos e planejando uma rebelião, o que não era nem um pouco fácil, porque ninguém lá entendia o que ele queria dizer, e as ordens mais simples que ele dava para que o plano desse certo no dia seguinte ninguém mais lembrava.
Até que ele se tornou um verdadeiro boi, e já estava chegando a época em que ele seria destinado a um ou outro pasto. Estava chegando a hora de, finalmente, decidir para qual lado ele iria – ou se não iria para nenhum dos dois!
Neste dia, ele pôs o seu plano em ação; pouco antes do anoitecer, quando todos seriam recolhidos, acertou um dos bois com o seu chifre, disse que foi o outro que o havia feito, saiu do meio do caminho, lembrou a todos o que tinham de fazer para que seu plano desse certo (havia repetido isto diariamente por incontáveis luas! Restava torcer para que lembrassem) e, quando os vaqueiros vieram para resolver a confusão, apoiou-se em um colega que havia deitado propositalmente perto da cerca e pulou por cima dela – uma fuga espetacular, nunca antes vista no mundo bovino!
Correu pelos campos o mais que pôde, conforme o dia escurecia; quando os vaqueiros foram contar e deram pela sua falta, procurando-o em todos os lugares da fazenda, já estava bastante longe.
E, assim, foi conhecer o mundo.
Mas a vida não foi fácil para Angus.
No começo, estava empolgadíssimo: podia pastar onde quisesse, quando quisesse; podia ir para um ou outro lugar, dormir onde e quando queria, debaixo das árvores, ou em campo aberto, ou em lugares abandonados… De vez em quando se aproximava de uma fazenda e se encostava à cerca (sempre longe o suficiente dos vaqueiros, logicamente), chamando por seus colegas de sofrimento, contando-lhes como era boa a vida no campo. Eles, gordos e com aqueles olhares perdidos, encaravam o outro, magro e com um olhar talvez esperto demais – mas não havia nada que os convencesse que era melhor estar do lado de fora.
Mais de uma vez quase foi pego de volta por um vaqueiro, mas escapou por um triz.
Uma época, chegou a morar com uma família, que o adotou e lhe deu comida. Considerou aquilo como férias; ficou um bom tempo descansando de suas andanças, deu uma boa engordada e já estava ficando perigosamente acostumado, quando, do nada, o seu dono – que passava necessidade e tinha de alimentar uma família de cinco filhos e dois netos – decidiu que era hora de matá-lo, aproximando-se com um facão afiado.
Mas Angus certamente não era um boi comum; acertou-lhe um coice no meio do peito e saiu correndo como da primeira vez em que fugira da fazenda. Machucou a pata nesta fuga e desde então nunca mais foi o mesmo; não conseguia mais correr tão rápido e andava mancando por aí.
E assim seguiu sua vida, até que, magro e cansado, por um acaso do destino parou novamente diante da sua antiga fazenda, alguns anos depois. Todos pareciam saudáveis, gordos, sorridentes e felizes; procurou seus antigos colegas, e alguns já haviam desaparecido – teriam ido para os rebanhos especiais? – enquanto outros ainda estavam lá.
Sua professora, infelizmente, já havia morrido, o que era uma pena; gostaria muito de poder discutir com ela, ainda que através da cerca, sobre tudo o que havia aprendido nestes últimos anos em que estivera longe.
Observou a vida na fazenda, como era tranquila, segura, ainda que com um destino terrível diante de si. E depois, pensou em si mesmo, no que havia feito até então, e se tudo realmente havia valido a pena. Tudo pelo que sofrera, tudo pelo que passara, para quê? Não sabia dizer. No final das contas, não iriam todos para o mesmo lugar?
Lembrou-se do matadouro.
Não, se ele lutasse, não iria! Se lutasse, não seria morto para alimentar um humano, mas sim, como a sua velha professora, morreria de velhice e cansaço. E era isso o que queria… Não era?
Tentou falar com seus amigos mais uma vez, convencê-los de que o mundo lá fora era melhor, mas não só ele estava irreconhecível, como não conseguia nem mais convencer a si mesmo.
Passou os olhos pela cerca. E, sem acreditar, havia, lá longe, uma pequena brecha, uma portinha aberta por onde poderia novamente entrar.
Será que deveria? Se voltasse aquela hora para casa, tudo pelo que havia passado teria servido para quê?
Por outro lado… Estava cansado, cansado de lutar contra tudo e todos.
Ficou um bom tempo lá, parado, olhando. E, quando deu por si, estava caminhando em direção à cerca e passando pela portinha…
Pá! Alguém atrás de si fechou a porteira. Pelo que pareceu, os vaqueiros o haviam reconhecido! Felizes, encaminharam-no para dentro do curral, deram-lhe de comer, uma coberta para cobri-lo, um veterinário para lhe examinar a pata…
Em pouco tempo, Angus estava lá com seus amigos, caminhando pelo pasto, comendo a grama e espantando as moscas. Para os humanos, ele não era mais interessante – havia sido muito maltratado pelo tempo. Era um boi que não teria mais uma carne tão saborosa e que não serviria para nada – isto é, se não acalmasse todo o rebanho com a sua expressão de sabedoria e calma, da mesma forma que a antiga professora fazia com todos eles.
E, assim, Angus, o boi revolucionário, continuou na fazenda por muitos anos, ensinando aos jovens bezerros não só como pastar e espantar moscas, mas como era o mundo lá fora e o que havia aprendido com isso.
Não que eles prestassem muita atenção. Mas ele tinha esperança. Porque, algum dia, algum jovem bezerro iria lhe fazer perguntas – e ele iria dizer tudo o que achava a respeito do que havia passado, e se havia, de fato, valido ou não a pena.
Nota do autor, outubro de 2021: esta história do Angus foi inspirada, em parte, pelo livro “Memórias de um Burro”, no qual trabalhei com Tatiana Belinky em 2012. De outra parte, pertence a elucubrações filosóficas múltiplas sobre nosso papel na Terra, críticas sociais a alguns aspectos da educação e das gerações, referências a Matrix e à alegoria da caverna de Platão.
Gosto muito desta crônica, também, porque a escrevi no meio da residência médica de ortopedia, o que era muito raro de ocorrer – normalmente, eu não tinha nem tempo, nem inspiração.
Ele deveria fazer parte de uma coleção – Contos de Fadas 2020 – cuja intenção era trazer para o futuro contos clássicos de 100, 200 anos atrás. Seria, assim, esta a nova versão do “Memórias de um Burro”.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais