Sugaça
Benjamim T. J Franquilim era um cientista famoso. Bom, talvez, não tão famoso assim; o importante é que ele era um cientista genial. Tinha as invenções mais mirabolantes, como um catador automático de piolhos, um assoador de nariz portátil, um eliminador de odores para ser usado na calça… Entre outras coisas.
Entretanto, não se sabe por quê, a sociedade não reconhecia a sua genialidade. O que não seria surpreendente, não fosse o fato que, geralmente, a sociedade só vai reconhecer os grandes gênios quando já é tarde demais, e eles foram para o grande céu dos inventores.
Quando ele estava com cinquenta anos, surgiu a sua grande oportunidade: o governo havia aberto um programa de financiamento de invenções para aquele que conseguisse resolver a inversão térmica, problema que assola todas as grandes cidades. Ora, a inversão térmica é quando, no outono ou inverno pela manhã, o ar das camadas mais inferiores fica mais frio que o ar das camadas superiores, aquecido pelo sol. Com isso, as camadas de baixo não conseguem subir, até o solo se aquecer com o sol, e, por algumas horas, a poluição fica acumulada no chão, acabando com a qualidade do ar.
Aquele que conseguisse resolver o problema da inversão térmica receberia um grande prêmio, com direito a um beijo molhado da presidente, um troféu bacana e ver a sua invenção posta em funcionamento. É lógico que Benjamim não perderia esta oportunidade, de forma que se trancou em casa, como todo bom cientista um pouco fora dos padrões de normalidade de sanidade mental (para não dizer louco, o que seria cruel e politicamente incorreto) e ficou a trabalhar, dia e noite, até descobrir a solução para o problema.
No último dia do prazo, quando faltavam apenas trinta minutos para encerrar a apresentação dos projetos, Benjamim saiu de casa, montado em sua bicicleta, com dezenas de rolos da papéis na sua mochila, o jaleco imundo no corpo, o cabelo ensebado e bagunçado, a barba por fazer, e saiu pedalando pela cidade como um doido, até chegar ao prédio onde estavam sendo feitas as apreciações.
– Senhores, em não havendo mais ninguém para apresentar seu projeto…
– Eu tenho! – exclamou ele, entrando tão triunfantemente quanto um homem arfando e suando poderia entrar.
Todos os membros do comitê, que eram sete, balançaram as cabeças em desaprovação, e o presidente chegou até mesmo a dar um tapa na própria testa.
– Senhor Franquilim.
– Senhor Béu. Bom dia.
– O que o senhor trouxe para nós hoje?
– Esta aqui, senhores… É a invenção… Esperem só um pouquinho, preciso achar aqui nos meus papéis… Não é este… Não, este aqui é o recibo da comida de cachorro… Ora, vejam só, meu cortador de unha, estava procurando mesmo! Não, não é este aqui também…
– Senhor Franquilim, por que o senhor não faz como os outros competidores, que montam as suas apresentações em suas tábletis e…
– Achei! Papel é sempre melhor de se examinar. Quer dizer, se vocês ignorarem as manchas de café…
E ele grudou um grande papel amarelado na lousa, com dezenas de rabiscos e cálculos indecifráveis. Havia, no centro, um desenho bastante elaborado, de um tubo gigantesco e dezenas do que pareciam balões a sustentá-lo.
– Por favor, explique – o presidente pediu.
– Com toda certeza! Este aqui é o sugador de fumaça. Ou Sugaça, como eu gosto de chamá-lo. Funciona de uma forma bastante simples: ele possui um grande cano vertical, aqui, que tem uma bomba, aqui, e que fica flutuando sobre a cidade, em pontos estratégicos, sugando a fumaça de baixo para cima.
– Ceeerto – respondeu o presidente, com uma expressão de… Bem, a mesma que usamos quando ouvimos uma criança contando uma história absurda.
– E ele vai funcionar a partir da energia solar e eólica, então não vai produzir mais poluição, enquanto resolve o problema da poluição! Não é lindo?
Os membros do comitê dormiam. Alguém, no palco, bateu meia palma (ou, talvez, só tenha matado um mosquito).
– Certo, senhor Franquilim, sua apresentação foi feita. Em não havendo mais ninguém com nenhuma ideia mirabolante, nós vamos agora nos reunir para deliberação e retornamos em meia hora.
Todos eles se retiraram para uma salinha atrás da bancada, onde tinham comes e bebes, e se puseram a discutir a respeito dos projetos. Benjamim, enquanto isso, estava cumprimentando todos os colegas, inclusive os empertigados de terno, que já considerava como perdedores. Afinal, estava sentindo seu dedo mindinho coçar, e todos sabem que, quando ele coça, é sinal de sucesso.
Depois de uma espera aflitiva, os membros do conselho retornaram com a sua decisão.
– Após uma longa deliberação, definimos que o vencedor é… O senhor Ríguis, que inventou uma forma de transformar a poluição do ar em tempero para carnes!
Todos bateram palmas, inclusive o pobre Benjamim. O homem foi laureado com seus prêmios, recebeu o beijo da presidente, tirou fotos… Mas Franquilim não ficou para ver o resto; simplesmente juntou seus papéis e voltou para sua casa.
Mesmo assim, seu mindinho ainda coçava, por isso não se daria por vencido; iria construir a sua máquina e provar a todos que o que estava fazendo era realmente a solução para todos os problemas. E mais; não iria se satisfazer em solucionar a inversão térmica; iria dar um fim em toda aquela poluição, de uma vez por todas!
Pôs-se a trabalhar novamente, sem cessar, e, às vezes, até enquanto dormia (ser sonâmbulo tinha suas utilidades). Enquanto estava trabalhando, não ligou a televisão e por isso não ficou sabendo que a ideia do seu colega, Ríguis, não tinha dado certo, pois a poluição agora caía no chão como tempero, e todos ficaram cheirando a carne pronta para assar. Os cachorros ficaram doidos e saíram mordendo todo mundo pelas ruas; pessoas famintas de rua mordiam umas às outras, e ninguém mais aguentava comer carne assada, o que gerou um grande embargo econômico na agropecuária, que foi substituída pelo mercado de peixes. Com isso, pecuaristas ficaram pobres, pescadores, ricos, pessoas tiveram partes de seus corpos arrancadas, o índice de canibalismo subiu um pouco, e o governo achou por bem acabar com essa invenção maluca e convocar o segundo colocado, Benjamim, para pôr sua ideia em prática.
Indiferente a isso, ele não compareceu, e outro homem, que criou um aquecedor de solo que se aproveitava do calor interno do manto terrestre, assim evitando o fenômeno da inversão, tomou seu lugar (por sinal, esta ideia não deu certo, o inverno virou verão, os idosos não sabiam mais em que época do ano estavam, começaram todos a delirar, o asfalto derreteu, os carros ficaram presos… Ficou tudo uma bagunça).
Benjamim continuou, infatigável, até, finalmente, ter tudo completo. No seu jardim, dezenas de balões acumulados, um tanque gigantesco de gás hélio, um cano que parecia ser capaz de ir até a lua…
– Está prronto! – ele exclamou. Isso, assim mesmo, com sotaque alemão, sabe Deus por quê. – A minha sugadorr espacial de poluição inverrnal! É muito simples, minhas amigos e meus amigas! Ele vai sugarr todo o poluição daqui do chom e levarr parra o espaço siderral atrravés deste cano gigante!
E ele começou a encher seus balões. Um, dois, três… Logo, vinte balões já estavam ascendendo e levando para cima centenas e centenas de metros de cano. No chão, enquanto isso, as pessoas olhavam curiosíssimas para o que acontecia; quem era aquele doido?
Benjamim colocou seus óculos de sol, seu chapéu de aviador e cachecol que a sua avó tricotara e subiu com o último balão, controlando a altura com ar aquecido. Só parou quando já estava a mais de dez mil metros de altura, quando, apertando um botão, abriu a tampa superior do cano, abriu a tampa inferior e ligou a máquina. Com um estrondo, ela começou a puxar todo o ar que encontrava abaixo de si.
Porém, não havia passado uma hora que a máquina estava funcionando, Benjamim recebeu uma ligação em seu celular. Teve certeza de que era a presidente ligando para parabenizá-lo (seu mindinho ainda coçava).
– Senhor Franquilim, o que raios está fazendo?
– Estou fazendo a máquina sugadorra espacial de poluição inverrnal funcionarr!
– E por que está falando com sotaque alemão?
– É que tem um gerrgelim na minha garrganta!
– Então cuspa ele!
Cof, cof.
– Agora, sim! – falou o cientista.
– Muito bem, senhor Franquilim! Desligue está máquina agora!
– Por que, senhor Béu?
– Porque ele está sugando todo o ar da superfície da Terra! Está faltando oxigênio aqui embaixo! Os pássaros não estão se sustentando no ar, aviões não estão mais conseguindo decolar…
– Oh, mas não é possível!
– É claro que sim! Os satélites estão indicando que o seu cano atravessou a atmosfera terrestre e fez uma conexão com o espaço sideral.
– Mas esta era a ideia!
– Só que o espaço sideral está puxando todo o ar com o seu vácuo! Desligue isso, ou vamos todos morrer sem ar!
– Oh, meu Deus! – exclamou Benjamim. – Espere um pouco.
Ele puxou a alavanca para desligar a bomba, mas isto não funcionou.
– A máquina está funcionando sozinha, com o próprio vácuo do espaço! – Béu afirmou. – Não adianta desligar.
– Já sei!
Benjamim apertou o botão para fechar a tampa; a máquina, porém, enguiçou, pois a força do vácuo não permitia que a tampa se fechasse. O mesmo acontecia com a tampa inferior.
– E agora?
– Esvazie os balões, para o cano descer!
Ele apertou seus comandos no painel de controle, para esvaziar todos os balões afora o seu; pelo que o satélite indicava, no entanto, o cano continuava lá, parado em pleno ar, mesmo com os balões já caindo e se esborrachando no solo, dezenas de milhares de metros abaixo.
– O cano ficou preso no vácuo espacial! – disse o presidente.
– E agora?
– Faça alguma coisa, Franquilim! Estamos ficando sem ar…
– Oh, meu Deus! O que eu fiz?! – interroclamou, olhando ao redor. Como solucionar o caso? Não havia mais nada que pudesse fazer!
A não ser que…
– Está na hora de destruir a minha criação!
Ele jogou uma imponente escadinha de corda para fora, desceu do seu balão e se posicionou do lado do cano; a força sugadora era enorme, mesmo para aquele cano relativamente fino.
– Adeus, mundo!
Ele se jogou da escada, em direção ao cano e, por alguns momentos, achou que iria cair em queda livre até o solo, onde encontraria seu fim. Entretanto, logo se sentiu sendo tragado por inúmeros metros e, quando deu por si, estava preso, dentro do cano. Tentou gritar, mas, ironicamente, não havia ar.
Na atmosfera, o cano soltou um guincho. No solo, pessoas observavam conforme a estrutura inteira começava a descer e descer, desmoronando sobre si mesma…
Quando acordou, Benjamim estava no meio da praia, sendo removido de dentro do cano pelos bombeiros; do lado de fora, repórteres filmavam e fotografavam o acontecimento histórico, e Béu observava tudo com as mãos atrás das costas.
– O que foi que aconteceu?
– Você entupiu o cano. E, com isso, ele parou de funcionar. Aí, toda a estrutura caiu.
– Mas…
– Boa parte caiu na água, mas você caiu em cima do seu balão, bem perto da beira, e veio boiando até a praia.
– Mas, e o oxigênio da Terra?
– Bom parece que o seu cano tinha um furo antes de chegar à atmosfera. Então, o ar não foi sugado para fora, mas só redistribuído. Assim como a poluição. Respire! Nosso ar está limpíssimo, como não víamos há mais de dois mil anos!
– Ora, ora… – Benjamim respondeu, sendo colocado de pé pelos bombeiros.
O cientista se tornou herói internacional; foi capa de revista, recebido por reis e presidentes e, acima de tudo, recebeu dinheiro o suficiente para nunca mais precisar inventar nada para ganhá-lo e só ficar em casa, aproveitando a vida.
Assim, seria mais seguro para todos.
Nota do autor, setembro de 2021: não vou nem entrar na discussão das impossibilidades deste aparato do senhor Franquilim – afinal de contas, é um conto de fadas! A ideia surgiu quando estava, logicamente, dirigindo pela manhã e “aproveitando” o fenômeno de inversão térmica e a capa de poluição que temos na cidade de São Paulo.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais