Vanusa, a Venusiana, em: Consumismo automotivo
– Você não tem a intenção de trocar de carro?
Foi com esta pergunta que ela surgiu no banco do passageiro, como era seu antigo hábito. Quando ela fazia isso rotineiramente, eu estava até acostumado e não me assustava mais; porém, desta vez, fazia algo em torno de oito anos que ela não me dava um susto enquanto eu dirigia, então, logicamente, eu joguei com tudo o carro para a esquerda. Note que eu estava na pista da esquerda na radial leste, em direção bairro, às 7 horas da manhã, quando a faixa reversível estava funcionando e, por pouco, não houve uma colisão fatal. Mas, tudo bem. Recuperando-me aos poucos, diminuindo a velocidade para aquela de um carrinho elétrico de idosos, daqueles que você usa em shoppings, e dando a seta, eu fui saindo para a direita com a intenção de buscar o estacionamento onde pararia meu carro, para poder ir trabalhar.
– Depois de você quase me fazer bater, eu acho que isso teria sido, sim, necessário… – respondi, por fim.
– O quê…? Ah, sim, me desculpe! Eu tinha prometido que não ia mais surgir sem avisar, né?
Dei de ombros; numa época, ela tentou fazer uns barulhinhos de alerta, mas eu nunca me tocava de que era ela e me assustava do mesmo jeito.
– De qualquer forma, podemos voltar à minha pergunta? Você não pretende trocar de carro?
Eu também já havia desistido de perguntar por que ela me fazia determinadas perguntas.
– Eu pensei por um tempo – comentei. – Precisávamos de um carro maior, mesmo, são três crianças, mas, para falar a verdade, os carros estão tão, mas tão caros, que eu não sei… Além disso, sempre fico preocupado de ser muito visado.
– Muito curiosa a sua resposta…
– Por quê?
– Andei fazendo inquérito com diversos médicos nos últimos anos – ela comentou.
Ah, então era isso que ela estava fazendo quando estava desaparecida!
– Todos eles gostariam de trocar de carro, querem um importado, casa na praia, umas coisas assim… E aqui está você, com este carrinho meia boca, todo batido, uma lanterna quebrada…
– Ela funciona, ainda! Só preciso trocar o plástico! – defendi-me.
– Morando de aluguel – ela prosseguiu, inexorável – e sem a menor intenção de uma casa de praia. Por quê?
– Por quê?
– É, exatamente! Você não aspira a uma vida melhor?
– Claro que sim, Vanusa, mas, quem disse que ter um carro importado e uma casa na praia significam uma vida melhor? Eu simplesmente pus na ponta do lápis, ter uma casa na praia não vale a pena, nem comprar meu próprio imóvel, e muito menos trocar de carro, considerando que este aqui funciona bem e a alta que a gente tem tido dos preços. Tá, eu sei que eu preciso arrumar esse aqui, mas…
– Como você faz isso?
– Bem, eu trabalho, acaba não dando tempo de levar no mecânico e…
– Não, não isso! Como você escapa desse consumismo desenfreado?
– Eu…
– Como você faz para criar seus filhos longe desse consumismo, considerando que todos os amigos deles certamente estão tão cegos quanto seus próprios pais? Buscando o carro do ano, celulares de última moda, padrões de vida inalcançáveis, como se isso fosse suprir o vazio interior? Como combater esta modernidade líquida??
Vanusa estava investindo pesado em filosofia, ehm!
– Eu…
– Como você faz??? – ela exclamou, pegando-me pelos ombros, e era engraçado, porque, aparentemente, os venusianos são pecilotérmicos, já que suas mãos estavam tão frias quanto o ar-condicionado do carro.
– Eu só… Não me importo com isso? – perguntei, incerto.
– Você nunca me responde direito – ela bufou e desapareceu.
Acho que a Terra está fazendo mal para ela, pensei. Ela que nunca me deixa responder direito, sempre desaparece bem quando a gente começa a discordar…
E, conforme trancava o carro e observava todas as suas avarias, peguei-me perguntando:
Será que ela tem um consumismo por naves espaciais, igual a gente tem com carros?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais